20 de fevereiro, 2004
Há mais ou menos quinze anos, estava eu numa festa de classe média emergente, na noite em que a televisão apresentava nos seus vários telejornais o ridículo espetáculo dos seqüestradores do empresário Abílio Diniz, vestidos com camisetas do PT, quando alguém ao meu lado comentou: “imagina se o Lula ganha as eleições! Vamos ter que dividir nossas casas e apartamentos com favelados e essa gente da periferia…”
Mas o Lula e o PT não venceram aquelas eleições de ’89. Com o apoio do jornalismo da Rede Globo de Roberto Marinho, o então “caçador de marajás”, soube manipular a opinião pública no debate final entre os candidatos e sacou do seu invejável currículo de honestidade e integridade o episódio de Miriam Cordeiro. Foi o que se viu. O país ingressou numa fase de “modernidade”, suas elites ansiosas por pertencerem ao primeiro mundo apostaram no menino bonito das Alagoas que, orgulhoso demais, acabou por não entender o recado. Uma denúncia, uma matéria numa revista semanal e a própria rede Globo aliada aos grandes jornais do país resolveu logo a questão. A elite já tinha um candidato mais confiável para a próxima eleição.
Tal candidato, formado nos laboratórios da universidade brasileira, conhecedor do terreno em que pisava e sabendo exatamente para o que seria eleito, comprou votos para aumentar o seu próprio mandato e sucatear o país para o grande capital internacional, isto é, tentou encurtar o acesso do Brasil ao primeiro mundo, com a farra das privatizações e institucionalizando a “modernidade” da terceirização. O país caminhava a passos largos para o futuro, embora muitos se envergonhassem de apresentar o passaporte brasileiro nas suas viagens de turismo ou negócios.
Entretanto, o PT venceu as últimas eleições e o mundo não desabou. A elite brasileira e seus porta-vozes na imprensa e na televisão perceberam que o monstro não era tão horrendo quanto o pintavam. O Brasil não deu o calote no FMI, os juros baixaram 10% em um ano, ninguém foi obrigado a dividir a casa ou o apartamento com “essa gente” da periferia e com os favelados, a inflação foi contida, mas (e há sempre um mas) pode ser que tudo isso seja apenas para disfarçar. Há mesmo quem diga que o plano do governo Lula é transformar o Brasil numa outra Cuba e que se está apenas dando tempo ao tempo. E que o mentor desse plano de cubanização do Brasil tem no ministro José Dirceu o seu principal defensor. Essa conversa se dá entre ruralistas, alguns empresários, banqueiros e “outros” literalmente menos votados…
“Stalinista”, “maquiavélico”, “obcecado pelo poder”, “primeiro ministro plenipotenciário”, e aos poucos a mídia comprometida com o poder econômico (ou que dele faz parte) junto com os bolsões mais retrógrados e conservadores (embora com o edulcorado discurso da modernização) investe contra José Dirceu. Mas no plano das idéias e das hipóteses o embate é sempre mais difícil, até porque o ministro tem sido competente na sua caminhada política.
Que venha então o argumento mais palatável para a mídia e a classe média moralista: a suspeita de corrupção. Prepara-se uma fita (que já traz até a novidade dos letreiros, caso não se entenda o som), onde supostamente alguém está subornando alguém.
Mas quem está subornando? E por quê? Por que existe uma câmera estrategicamente colocada quase sobre a mesa de “negociações? Quem a colocou ali? Onde foi feita a gravação? A pedido de quem e com quais interesses? O assessor Waldomiro ou o bicheiro Carlinhos Cachoeira? Quando foi feita a gravação? Há algo de representado no diálogo entrecortado e montado. Parece que os atores não representam bem os seus papéis, com o grandioso e surpreendente final do 1%. E a máxima da brasileirada esperta “eu não me sujo por tão pouco”, onde é que fica? Será que, num esforço para recuperar a dignidade dos corruptos, o Sr. Waldomiro resolveu baixar o percentual dos quase 30% da era Collor/PC Farias, para 1%, colaborando assim para a queda da inflação?
Atenção que o plano de desmoralização do governo Lula foi posto em marcha. A vítima escolhida, por enquanto, parece ser o ministro José Dirceu, a quem a direita ainda não engoliu e a esquerda purista ainda não entendeu. Aguardemos os próximos lances. A Venezuela já assiste a esse filme há quase três anos.
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Izaías Almada, mineiro de Belo Horizonte, escritor, dramaturgo e roteirista, é autor de Teatro de Arena (Coleção Pauliceia da Boitempo) e dos romances A metade arrancada de mim, O medo por trás das janelas e Florão da América. Publicou ainda dois livros de contos, Memórias emotivas e O vidente da Rua 46. Como ator, trabalhou no Teatro de Arena entre 1965 e 1968. Colabora para oBlog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras. (http://boitempoeditorial.wordpress.com)