Em entrevista ao Brasil de Fato, Vladimir Safatle, professor de filosofia da USP, aponta limitações do lulismo e a falta de radicalidade da esquerda
por Guilherme Diniz da Silva, em 27/02/2013
Autor de “A esquerda que não teme dizer seu nome”, Vladimir Safatle tem sido um dos mais notáveis intelectuais a discutir as questões filosóficas e morais da esquerda mundial. Os desafios impostos pela modernidade e pela crise do capitalismo internacional são alguns dos temas que o professor de filosofia da USP abordou em entrevista ao Brasil de Fato.
Confira abaixo a entrevista.
Brasil de Fato - O senhor demonstrou no seu livro A esquerda que não teme dizer seu nome que a principal luta política é pela redução das desigualdades socioeconômicas e que a esquerda deve ser “indiferente às diferenças”. E que um plano político orientado sob a perspectiva do igualitarismo poderia ser, por exemplo, a determinação de um “salário máximo”, de até vinte vezes o valor do salário mínimo. A proposta de uma política da indiferença de um Estado pós-identitário é possível atualmente no Brasil?
Vladimir Safatle - A ideia de um salário máximo foi apenas um exemplo visando mostrar como políticas de combate à desigualdade podem ser aprofundadas. Na verdade, diria que a luta política deve ser dupla. Por um lado, pela limitação brutal das desigualdades econômicas. Por outro, pela compreensão de que as sociedades contemporâneas são animadas por “zonas de indiferença cultural”. Isto passa por quebrar a compreensão da cultura como ponto de clivagem da vida social. Temos atualmente a tendência de acreditar que sociedades complexas são assombradas por diferenças culturais profundamente irreconciliáveis, com esta que passaria, por exemplo, entre comunidades muçulmanas de imigrantes pobres e classe média “cosmopolita” dos grandes centros europeus. No entanto, a única maneira de superar tais pontos de colisão passa por mostrar como as diferenças externas entre dois grupos são, no fundo, diferenças internas a cada um deles. Por exemplo, não há nada parecido com uma “visão islâmica de mundo”. Ela é tão clivada e contraditória quanto as diferentes visões de mundo que podem existir entre um evangélico convicto e um cristão que há anos não passa na porta de uma igreja. Insistir nestes pontos é uma estratégia possível para impedir que pretensas diferenças culturais se transformem no bloqueio da vida social.
Também foi trabalhada a questão da incapacidade de qualquer ordenamento jurídico representar adequadamente a sociedade, visto que o Estado Democrático de Direito impede o exercício da justiça ao não reconhecer a “legalidade da violação política”. Pode-se dizer que o caso da decisão judicial de reintegração de posse do Pinheirinho em São José dos Campos (SP) serve de exemplo da fragilidade do Estado e da legalidade da violação política?
Creio que este é um bom exemplo de como justiça e direito podem se dissociar, mesmo no que convencionamos chamar de “Estado democrático de direito”.
Ao criticar a homogeneidade política e defender a necessidade de radicalizar os extremos políticos na revista Carta Capital, o senhor observou que os partidos PSD e PSB são “partidos-coringa”, pois não representam nenhum setor da sociedade e fazem todo tipo de aliança política. Vemos hoje que o governo federal está cada vez mais associado a partidos como PMDB, PSB e PSD. Contudo, ainda são discutidas algumas propostas como a cobrança de impostos sobre grandes fortunas. Como o senhor avalia a viabilidade de efetivação de uma proposta dessa magnitude no governo atual com tais alianças?
Não creio que nada desta natureza será aprovado por este governo. Não há razão alguma para acreditarmos que há algum movimento nesta direção. Já se passaram dez anos desde o primeiro governo Lula e, vejam só, dez anos depois não há sequer um projeto no Congresso Nacional para a taxação de grandes fortunas. No interior do lulismo, todas as políticas que poderiam radicalizar conflitos de classe foram e serão evitadas.
Quais seriam os motivos que levaram o discurso de esquerda no Brasil a perder a sua radicalidade?
Incapacidade em fazer as pessoas sonharem com um futuro diferente e melhor. A esquerda não consegue mais fornecer uma imagem crível de sociedade onde nossos problemas estruturais serão vencidos. Se é fato que o lulismo conseguiu criar o primeiro sistema efetivo de assistência social no Brasil, algo realmente fundamental, é também inegável que sua criatividade político-social parece esgotada. Hoje, o governo pratica um discurso das conquistas passadas que devem ser preservadas, não dos projetos futuros que devem ser alcançados. Um exemplo: o governo tem um programa crível de universalização do ensino publico de qualidade? Ou do sistema de saúde? Vejam, não há sequer um projeto neste sentido. Algo do tipo: queremos um sistema público universal de ensino de alta qualidade em, digamos, quinze anos.
Por outro lado, a incapacidade crônica do PT em fazer uma autocrítica a respeito de casos de corrupção no governo será algo mortal. O discurso da luta contra a corrupção não é necessariamente um fantasma que a direita levanta quando procura fazer a crítica do Estado que rouba o dinheiro do contribuinte. Vejam, por exemplo, a Islândia. Lá, o discurso contra a corrupção serviu para criticar o neoliberalismo com sua relação incestuosa entre bancos e classe política, entre sistema financeiro e processo decisório dos governos. Perder o discurso do combate à corrupção, abrindo mão da possibilidade de focá-lo nos corruptores do Estado (grandes empresas, sistema financeiro), será algo imperdoável.
Um intelectual que utiliza diversas mídias sociais para se expressar pode encontrar não raramente obstáculos e censuras. Há casos polêmicos de “demissão” de jornalistas por entrarem em conflito com determinados setores sociais ou figuras políticas. Na sua experiência, mídias públicas e comerciais se distinguem no que se refere à liberdade de expressão?
Nunca fui censurado, de forma alguma. Creio que isto ocorreu porque sempre fui bastante claro em minhas posições políticas e engajamentos. Quem me chamou para expressar minhas opiniões sabia de antemão o que viria. Como dizia o velho Lutero: “Aqui eu permaneço e não posso fazer de outra forma”. “Eles a fizeram abrir uma nova conta, agora corrente, mas até hoje só vieram despesas”
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Vladimir Safatle é professor do departamento de filosofia da Universidade de São Paulo, um dos coordenadores do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise (Latesfip) da USP, colunista da Folha de S. Paulo, da revista Carta Capital e da revista Cult, e comentador do Jornal da Cultura da Rede Cultura de Televisão.
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