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domingo, 23 de abril de 2017

Bolivarianismo à francesa: brasileira disputa eleições na França

Por Manuca Ferreira, de Paris*


Neste domingo, 23 de abril, a França tem chance de colocar um esquerdista, Jean-Luc Mélenchon, no segundo turno da eleição presidencial, em uma disputa onde a candidata xenófoba de extrema-direita Marine Le Pen parecia ser a grande estrela. E o socialismo sul-americano estará representado por Silvia Capanema, mineira de 38 anos que vive na França desde o fim de 2002, se filiou ao Partido Comunista Francês (PCF), foi eleita vereadora, ocupa um cargo equivalente ao de deputada estadual e é secretária da juventude e luta contra as discriminações na região de Seine-Saint-Denis, a mais pobre da França continental

(A comunista franco-brasileira Sílvia Capanema)
Casada com um franco-brasileiro, mãe de duas filhas, uma de sete meses e outra de quase três anos, Silvia prossegue na área acadêmica –ela veio à França fazer um mestrado em história e é professora de cultura brasileira, língua portuguesa e história do Brasil, Portugal e América Latina na Paris 13–, que concilia com o ativismo político.

Nessa entrevista exclusiva, por email, para o Socialista Morena, a comunista fala da campanha de Mélenchon, do France Insoumise (França Insubmissa) e sua possibilidade de chegar ao segundo turno, em 7 de maio. Silvia fala ainda dos desafios das esquerdas francesa e brasileira e diz, sem perder de vista a terra natal: “Houve golpe, sim, e é preciso reconstruir o Brasil”.

Socialista Morena – Como surgiu seu interesse pela vida político-partidária?

Silvia Capanema – Sempre gostei. No Brasil, atuei um pouco no movimento estudantil mais tradicional, mas depois me afastei e fiquei mais concentrada na vida acadêmica. Vindo morar aqui, participava de passeatas, mas não estava muito envolvida. Sempre mais envolvida na vida acadêmica, associativa, sempre de esquerda. Quando vim morar em Saint-Denis, em 2010, é que
entendi a necessidade do engajamento e participação. Brinco que sempre fui comunista e não sabia. Vendo a situação da periferia francesa –Saint-Denis é uma periferia de Paris bem popular, com muitos imigrantes, alojamentos sociais, jovens desempregados–, eu me aproximei dos grupos de esquerda local. Via que, por um lado, a cidade fazia um esforço enorme em termos de serviços públicos e de rede associativa para a população, e que muita coisa funcionava. Saint-Denis é uma cidade tradicionalmente comunista. Por outro lado, havia uma necessidade grande de muitas coisas e de continuar um trabalho intenso de mobilização da população, e até de denúncia pelo tratamento desigual que recebem aqui. Denunciar o racismo, o desprezo e o preconceito das elites francesas com relação às periferias das grandes cidades. Então, veio a campanha de 2012, a presença do Front de Gauche (Frente de Esquerda) e a candidatura de Jean-Luc Mélenchon. Eu fui totalmente conquistada pelo Mélenchon e os militantes do Front de Gauche. Entrei na campanha. Quando acabou, os comunistas locais nos acolheram e acabamos aderindo ao PCF, meu marido e eu.

O que é ser comunista na França?

Uma realização, para mim, pois me sinto ’em família’ e, ao mesmo tempo, com toda autonomia para lutar e agir. O PCF é um partido revolucionário e que, ao mesmo tempo, tem uma história de conquistas reais. Uma história nacional, com vários atuantes na resistência francesa durante a guerra (resistência à ocupação nazista). Antes mesmo da resistência, com a formação do Front Popular e as conquistas dos trabalhadores (jornada de trabalho de 40 horas, férias remuneradas) em 1936. Depois, com a composição do Conselho Nacional da Resistência e a aliança com os sociais democratas (De Gaulle) que resultou na construção do sistema social francês depois da guerra (a seguridade social, sobretudo, obra de um comunista e as alocações familiares – equivalentes ao Bolsa-Família). Mais tarde, com o programa comum de 1981 que levou à eleição de Mitterrand e algumas conquistas como a ‘renda mínima de inserção’, apesar da decepção depois. E até mesmo a participação no governo Jospin, que criou a jornada de 35 horas. Um partido próximo dos sindicatos e das lutas sociais, que se associa a outros partidos ou movimentos para obter conquistas, como foi o Front de Gauche desde 2008 e a atual campanha de Jean-Luc Mélenchon, com a France Insoumise (movimento criado em 2016). E também, um partido com uma história municipal e local forte. As periferias de Paris, várias cidades, são marcadas por prefeituras comunistas, pela presença importante da moradia social, dos serviços públicos para a infância (creches, colônias de férias, escolas), arquitetura ousada em alguns lugares, visão de que é preciso haver parques e locais de lazer para as classes populares. É uma cultura, uma tradição. Ser comunista também é participar da Fête de L’Humanité, um festival que reúne entre 200 e 500 mil pessoas todos os anos em setembro, e que é um momento forte de encontro das esquerdas mundiais. É estar próximo do povo, panfletando nas ruas, nas moradias populares. Eu tenho muito orgulho dos camaradas e orgulho de ter sido indicada para ter o cargo eletivo que tenho. Eu, cidadã de origem estrangeira, mulher que fala com sotaque, que vem de um país de terceiro mundo (logo, ‘inferior’ em muitos olhares). Só os comunistas e seus próximos é que realmente me deram o lugar de igualdade na França que eu sempre busquei ter, de cidadã. Eu devo isso a eles, a nós, que sempre confiaram em mim desde o início. Logo que aderi ao partido, já me deram responsabilidades importantes, como criar um jornal da nossa seção, que não saia há anos, e que nós conseguimos lançar e foi um sucesso. O jornal foi batizado ‘La Citoyenne’ (A Cidadã).

Como está sendo a campanha de Mélenchon à presidência?

É uma campanha inovadora, que atraiu jovens e classes populares. Ele é excelente orador e tem uma cultura muito ampla. Mudou a imagem de agressivo para a de ‘vovô sábio’, mas continua combativo. E valoriza os discursos, debates. Sempre que fala, chama muito a atenção com a astúcia de linguagem e poder de persuasão. Acabou seduzindo jovens. Ele inovou na forma, quando usou hologramas em comícios, aparecendo simultaneamente em sete cidades. Usa a internet como nenhum outro, tem um site onde recebeu mais de 420 mil apoios. Usa o youtube, redes sociais… Novos aplicativos como o Mélenphone (um telemarketing autoexplicativo que qualquer militante pode fazer da sua casa, com um programa que mostra quais os melhores militantes em números de chamadas) e um jogo eletrônico. No conteúdo, o programa também é ótimo. Um projeto econômico que é totalmente explicado e sustentado por economistas não-ortodoxos. E várias ideais que foram evoluindo e que estão explicadas em livros temáticos: juventude, relações internacionais, ecologia, escola etc… Todos os comícios dele reúnem milhares de pessoas. Ele dá esperança e tem um programa inovador, revolucionário, que propõe uma nova república e uma retomada econômica keynesiana, com aumento dos salários, cobertura da seguridade social a 100% das pessoas, aposentadoria aos 60 anos (financiada pela igualdade salarial entre mulheres e homens), agricultura ecológica que será consumida nas cantinas escolares. Nova política fiscal, que combate a evasão e taxa os grandes grupos e menos as classes médias e os pequenos empreendedores… Enfim, os pilares do conteúdo são: reforma política (VI República com menos poder dos políticos e maior controle popular), transição ecológica como motor de investimento econômico (substituir o nuclear por energia limpa; investir na agricultura orgânica), avanços sociais (mais funcionários para as escolas, saúde e polícia sobretudo; aposentadoria aos 60 anos com 40 anuidades; igualdade salarial entre mulheres e homens; seis semanas de férias e efetivar a jornada de 35 horas; aumento de mais de 15% do salário mínimo). Programa excelente com linguagem excelente. Mas, claro, as mídias combatem e o pensamento tradicional e elitista francês tem medo.


A senhora disse recentemente que o Nuit Debout (movimento político anti-institucional criado, inicialmente, para se opor à reforma trabalhista do governo socialista) influenciou a campanha de Mélenchon ainda que ele não seja um candidato do movimento. De que maneira se dá essa influência?

Ele foi sensível a esse movimento. Ele viu o Nuit Debout nascer e pensou que existia, na França, algo como os “indignados” mundo afora. Então, ele pensou na “France Insoumise”, ultrapassando o quadro do Front de Gauche, que era o nosso quadro anterior. Isso aparece na vontade de resistir ao desmonte do sistema social francês e de propor uma nova organização política mais horizontal, com renovação das instituições. Além disso, criar uma forma de enfrentar o acúmulo de capitais e de distribuir as riquezas, e de respeito à natureza de maneira incondicional.

De que maneira a senhora e a campanha de Mélenchon respondem às “acusações” de que ele seria bolivariano, interessado em fazer um processo de “venezualização” da França?

Isso é o terrorismo da grande imprensa, dos grandes grupos, dos empresários. Terrorismo que usam contra o Lula, a Dilma no Brasil, e sabemos que é absurdo! Claro que Mélenchon conhece a América Latina e usa as suas referências. E claro que não há só coisas ruins que foram feitas, principalmente em termos de democracia local. Mas ele conhece os limites e erros e o programa dele é completamente diferente e nunca vai repeti-los. Por exemplo, a dependência do petróleo na Venezuela. O que é proposto aqui é completamente diferente! Essa propaganda é a atualização das propagandas anticomunistas (perigo vermelho) que sempre se usava contra as esquerdas. Cair nisso é ignorância pura, falta de cultura.

Sair da União Europeia e da Otan entram de que maneira no programa de Mélenchon? Corre o risco de haver segregacionismos caso ele ganhe?

Sair da Otan é a proposta clara. Quanto à UE, ele não quer sair. Quer negociar os tratados e mudar a orientação da Europa, pois do jeito que está, com a regra do déficit fiscal e da livre concorrência, vai destruir a atividade econômica dos países, e, aí sim, destruir a Europa. Mélenchon pretende criar uma Europa social, com protecionismo social (para evitar o dumping e pressionar os outros países para que eles transformem suas formas de produzir e respeitem os trabalhadores). Ele acha que a relação de forças na Europa é muito desigual e que a França, segunda economia do bloco e nação de prestígio político importante, tem condições de impor mudanças. Ele sabe que terá aliados para isso e que vai conseguir modificar, basta negociar. Mas, numa negociação, é preciso haver um plano B, para poder ganhar força caso a pressão não seja cedida. Várias pessoas estão escrevendo ‘JLM é quem pode salvar a Europa!’. É isso que queremos!

Você certamente tem acompanhado o que tem acontecido no Brasil. Qual a sua opinião sobre o quadro atual no nosso país?

Houve golpe, sim, e é preciso reconstruir o Brasil. Fazer uma série de reformas, contra-reformas e avanços sociais. Acho que o Brasil também precisa de uma VI República que combata o sistema que possibilita a corrupção. Uma reforma política radical, com Constituinte formada por cidadãos sem mandato eletivo, financiamento público de campanhas, limitação de mandatos, coerência partidária e programática. Reforma fiscal é indispensável (taxar mais, taxar heranças, rentistas, rever isenções a grandes empresas). Reforma agrária (buscando a agricultura camponesa, que pode ser a base alimentar nas escolas públicas). Reforma territorial para equilibrar as finanças dos Estados, repassando responsabilidades para a União talvez. E não aceitar as reformas feitas por Temer, fazer uma contra-reforma: Previdência, PEC dos gastos públicos, código do trabalho… Avançar nas questões feministas e de igualdade de gênero, bem como de igualdade racial e promoção da diversidade. Enfim, refundar o SUS, a educação nacional. Acho que boa parte do programa “Avenir em Commun” [programa proposto por Mélenchon] seria bom para o Brasil também!

Há um posicionamento oficial do PC Francês e da France Insoumise sobre o processo de impeachment e o atual governo brasileiro?


Denunciamos o golpe! Tanto o PCF quanto as equipes de Mélenchon. Estamos envolvidos nos coletivos locais desde o inicio do processo. O setor internacional do PCF é bastante ativo com relação a isso.

Após as contradições da esquerda no poder, tomando como exemplos tanto o governo socialista de Hollande como a experiência do lulopetismo no Brasil, como reposicionar este campo no atual contexto mundial?

É preciso refazer a esquerda. Uma esquerda de transformação social e de mentalidades. Revolucionária. Não ceder ao neoliberalismo e apresentar outras propostas, demonstrar. Voltar às ruas, ao encontro do povo. Deixar movimentos sociais e sindicais fortes, mas independentes. A esperança pode ser o Podemos- Unidos Podemos, na Espanha, a France Insoumise-PCF, o PSOL. Mas os grandes partidos também vão ter de se repensar, como o PT ou o PS (Partido Socialista). E se refundar. Aí poderemos fazer alianças mais largas para obter objetivos comuns, pensar nessa troca como algo que enriqueça e não deteriore os partidos.
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