PÁGINAS

terça-feira, 13 de outubro de 2020

Livro do Antropólogo Luiz Eduardo Soares traduz o fascismo do século 21 ‘a la Bolsonaro’

Por Claudio Motta

Em seu mais recente livro, o antropólogo Luiz Eduardo Soares faz um diagnóstico preciso do governo e da sociedade que emerge sob o fascismo bolsonarista



O antropólogo Luiz Eduardo Soares não tem dúvida. O Brasil vive sob o fascismo desde a eleição de Jair Bolsonaro. O cientista político é um dos mais importantes especialistas em segurança pública do país. E conhece a obra de Bolsonaro de longa data. Foi subsecretário de Segurança e Coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania do Estado do Rio de Janeiro, de 1999 a 2000, onde Bolsonaro e seus filhos construíram a trajetória política. Em seu mais recente livro, Dentro da Noite Feroz – O Fascismo no Brasil (Boitempo Editorial), Soares faz um diagnóstico preciso desse governo e da sociedade que emerge sob o fascismo em tempos de Bolsonaro. Uma obra essencial para quem quer entender esse Brasil em que estamos vivendo. O e-book está disponível nas lojas Amazon, Apple, Google e Kobo.

____________________
Postagens Relacionadas
____________________

Escritor, dramaturgo e pós-doutor em Filosofia Política, Luiz Eduardo Soares é autor e coautor de dezenas de livros. Inclusive os best-sellers Elite da Tropa 1 e 2, que deram origem ao filme Tropa de Elite. Pela Boitempo, publicou ainda Desmilitarizar – Segurança Pública e Direitos Humanos (2019). E também ocupou a Secretaria Nacional de Segurança Pública – no Ministério da Justiça chefiado por Márcio Thomaz Bastos em 2003, primeiro governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Conhecedor da máquina pública, o antropólogo alinhava, em sua nova obra, o fio condutor que levou ao estado de coisas que assola o Brasil.


Destruir o outro é uma das razões de ser e existir do fascismo, e isso não é diferente entre os seguidores de Bolsonaro, explica Soares, em entrevista exclusiva à Rede Brasil Atual. “O fascismo agrega apoios, promovendo uma identidade afetivo-simbólica cujo fundamento é a definição de inimigos (imaginários ou reais) e a difusão do ódio. O que significa que a prática orientada por essa ideologia mobiliza a sociedade, intensamente, e o faz numa perspectiva belicista, cuja meta é a eliminação do outro.”

A liberação do acesso a armas faz parte desse projeto de destruição que administra o Brasil desde 2019. “Armar a população, que na prática significa liberar o acesso de milicianos às armas, é, sim, um risco e uma ameaça evidente de golpe. É como uma espécie de reserva de força golpista que funciona como chantagem e mantém sob coação as instituições e segmentos populares”, observa o professor.


Sob a guinada ao fascismo à la Bolsonaro, o Brasil perde patrimônio, soberania e capacidade de diálogo social. E isso dentro e fora do país. “Ruído faz as vezes de argumentos. Agressões aos outros e ao que cultuamos como civilidade e racionalidade”, afirma Soares, sobre o funcionamento desse modo de governo fascista. “Afinal, para os fascistas, o outro que diverge não é opositor ou adversário, é inimigo. O afeto predominante nunca foi o respeito, mas o ódio.”

“O governo do Brasil reproduz hoje a mistura entre bolsonaristas, milicianos e de evangélicos manipuladores. Uma mistura que destruiu o Rio de Janeiro”


O Brasil inclusivo, das cotas, dos direitos trabalhistas, do acesso à educação e das políticas públicas mitigadoras da desigualdade acabou. O governo do Brasil reproduz hoje a mistura entre bolsonaristas, milicianos e de evangélicos manipuladores que destruiu o Rio de Janeiro.

“Com mais dois componentes nessa alquimia explosiva: as elites agrárias do centro-oeste, as elites rentistas de São Paulo e as camadas médias endinheiradas de todo o país”, destaca Soares. “Sobretudo do Sudeste e do Sul, inconformadas por terem seus privilégios afrontados pela promessa de menos desigualdade dos governos social-democratas do PT. Repito: promessa, uma vez que não chegou a haver perda de privilégios nem efetiva redução de desigualdades, embora tenha havido significativa redução da pobreza. Afrontados também por políticas afirmativas antirracistas, como as cotas, que essa turma, evidentemente branca e, como se vê, racista, não aceita, nunca aceitou.”

Esse projeto de destruição, que tem a grife do fascismo sob Bolsonaro, chegou ao poder com a ajuda da imprensa, conservadora e liberal. E se mantém graças à sua conivência. Soares elenca também entre os responsáveis pelo horror que assola o Brasil, a Lava Jato, grupos de ultra-direita, políticos oportunistas. “Mas, insisto, isso não teria bastado sem o condomínio de pastores manipuladores.”

Tem volta, questiona a reportagem? O antropólogo avalia que sim. “Claro que estamos cada vez mais distantes do Brasil inclusivo, mas creio que terá volta, sim, embora não se trate apenas de prever, mas de construir essa volta.”

Leia a íntegra da entrevista com Luiz Eduardo Soares.




O que é fascismo?

Há muitas definições. Eu diria que é uma ideologia política (a qual, uma vez no poder, instaura um regime conforme seus valores) que propõe uma ordem totalitária, conduzida por um líder, na qual não haja partidos nem liberdade associativa ou de expressão, tampouco contrapesos institucionais ao executivo. Essa ordem se caracteriza pela defesa da propriedade e do tripé pátria-família-tradição, entendido de acordo com a leitura ultra-conservadora.

O fascismo agrega apoios, promovendo uma identidade afetivo-simbólica cujo fundamento é a definição de inimigos (imaginários ou reais) e a difusão do ódio, o que significa que a prática orientada por essa ideologia mobiliza a sociedade, intensamente, e o faz numa perspectiva belicista, cuja meta é a eliminação do Outro.

Na Itália, o sistema econômico adotado foi um capitalismo corporativo, não-liberal, mas no Chile, de Pinochet, foi o neo-liberalismo, em sua versão primitiva. No Brasil, para se eleger, Bolsonaro aliou-se ao capital financeiro e passou a defender a agenda neoliberal do chamado “mercado”, mas casamentos de conveniência podem ser provisórios.

O Brasil e os brasileiros já viveram sob o fascismo?

Entre 1937 e 1945, a ditadura do Estado Novo tinha características nitidamente fascistas. A ditadura militar de 1964 a 1985 (que alguns chamam civil-militar, para acentuar a participação de segmentos civis) teve aspectos também fascistas, mas houve certo hibridismo no discurso e nas práticas, sobretudo até 1968. Nem toda ditadura é fascista, embora também seja repulsiva. Ao regime de 64 faltou a mobilização da sociedade e a comunicação direta do líder com as massas.


Diante de tantas evidências de ligação de Bolsonaro com as milícias – e da presença do bolsonarismo nas polícias militares –, o senhor acredita que ele respeitará o resultado eleitoral, caso perca em 2022? Armar civis pode fazer parte desse modelo de fascismo para manutenção do poder pelos seguidores de Bolsonaro?

Para os fascistas, qualquer agressão ao que nos resta de democracia é possível, a depender da correlação de forças. Armar a população, que na prática significa liberar o acesso de milicianos às armas, é, sim, um risco e uma ameaça evidente de golpe, uma espécie de reserva de força golpista que funciona como chantagem e mantém sob coação as instituições e segmentos populares.

Lembremo-nos de que há, atualmente, na prateleira das opções golpistas, no repertório das vias para a demolição da democracia, três modelos: o húngaro, o boliviano e o clássico. O primeiro se caracteriza pela corrosão gradual, progressiva e lenta das instituições democráticas, até que seja tarde demais. O segundo, pela combinação entre omissão das forças armadas e iniciativas policiais golpistas locais. O terceiro é aquele adotado no Brasil em 1964, com tanques na rua.

Os analistas trabalhavam com o primeiro, acreditando que os outros dois não seriam compatíveis com a complexidade do Brasil. O motim policial do Ceará incluiu na pauta a hipótese boliviana e a reunião palaciana de 22 de maio, relatada em furo de reportagem jamais desmentido pela revista Piauí, colocou na agenda o modelo clássico. Refiro-me à reunião entre Bolsonaro e os ministros palacianos, que ele abriu informando que decidira intervir pela força.


Esse padrão de fascismo de negação da ciência em nome de Deus, como costuma dizer Bolsonaro, seria responsável pelas milhares de mortes pela covid-19? A perseguição aos intelectuais também faz parte desse padrão de negação?

Sem dúvida. A negação da ciência, da crise climática e da gravidade da pandemia está a serviço de um valor e um compromisso. O valor é aquele que deprecia a vida, sobretudo dos indivíduos das classes subalternas, a vida de sociedades originárias, que deprecia o valor da equidade, de direitos iguais, de direitos coletivos ao futuro, deprecia a vida na natureza, de um modo geral. O compromisso é aquele com as classes dominantes, no campo e na cidade, dos garimpeiros, madeireiros, grileiros e ruralistas que depredam o ambiente, e das elites nacionais e internacionais que dirigem e se beneficiam do capitalismo selvagem. A perseguição aos intelectuais é a outra face da mesma moeda, pois é preciso calar as vozes que se opõem e denunciam.


Como é possível fazer com que as pessoas reconheçam os riscos desse fascismo bolsonarista, se coerência não é uma condição indispensável à construção dos valores fascistas?

Muito difícil responder. A resposta honesta é: não sei. Convencer alguém significa argumentar e contar com a escuta alheia, submetendo à interlocutora ou ao interlocutor informações que possam ser confirmadas ou infirmadas segundo critérios públicos e fontes independentes. Acontece que uma característica do fascismo é seu fechamento dogmático e impermeável a argumentos, evidências. Aquilo que se chamava bom senso e realidade já não tem merecido o mínimo apreço, nem mesmo como ponto de partida para um diálogo, que, aberto e razoável, poderia redefini-los.

Alguns exemplos: há consenso entre cientistas quanto à crise climática, quanto à gravidade da pandemia (de resto já comprovada pela tragédia diante de nós) e quanto à disponibilidade de armas: quanto mais armas, mais mortes. Contudo, diz-se o contrário sem nenhum pudor. Outro exemplo: nega-se a própria existência da ditadura de 1964.

Uma ilustração recente foi o patético e inqualificável primeiro debate entre os candidatos à presidência dos EUA, Trump e Biden. Um debate, um diálogo supõe o respeito a algumas regras, entre elas: um se cala para o outro falar. Nem isso ocorreu. Trump interrompeu seguidamente seu adversário e não deixou nem o mediador falar. Parece a manifestação de bolsonaristas buzinando pelas ruas com seus automóveis. Ruído faz as vezes de argumentos. Agressões aos outros e ao que cultuamos como civilidade e racionalidade. Afinal, para os fascistas, o outro que diverge não é opositor ou adversário, é inimigo. O afeto predominante nunca foi o respeito, mas o ódio.


Cidadania x fascismo: estamos, com Bolsonaro, cada vez mais distantes do Brasil inclusivo? Isso terá volta?

Claro que estamos cada vez mais distantes do Brasil inclusivo, mas creio que terá volta, sim, embora não se trate apenas de prever, mas de construir essa volta. Creio que haverá volta mas não no sentido de retorno ao mesmo ponto, não como se estivéssemos em um movimento circular. Talvez fosse melhor descrever a dinâmica política como espiral, em que há retornos mas a pontos que não são mais os mesmos, até porque carregam consigo a história acumulada do que foi estar no análogo daquele ponto e dele afastar-se.

Há aprendizado, embora por vias tortas e com recuos, regressões. Também o aprendizado depende de nós, depende da memória coletiva que conseguirmos tecer entre nós, escrevendo, falando, dando aulas, fazendo jornalismo crítico, participando de movimentos sociais, atuando, publicamente, produzindo arte. História também se faz rememorando.

Em seu novo livro, o senhor faz um diagnóstico preciso desse Brasil que emergiu com Bolsonaro. Imaginava esse cenário?

Não, confesso que não, embora eu tenha escrito, em 30 de novembro de 2017, uma crônica que seria publicada depois no site Justificando, cujo título era O dia em que Bolsonaro tomou posse na presidência do Brasil.


“(…) Jair Bolsonaro toma posse no fim da manhã gélida do planalto central, apesar do verão. O Congresso está disposto a aclamar a nova cara do poder e abre as portas para os patriotas que vieram em caravana de todo o país. Casa cheia. Nas galerias, todo mundo veste a camisa da seleção brasileira, sopra vuvuzelas e entoa o hino da campanha vitoriosa:

‘Sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor ô, ô.’ Senhoras e senhores erguem terços, bíblias e panelas, o novo símbolo nacional. (…) No dia 2, os jornais estampam sua adesão: ‘Discurso de posse dissipa especulações e aponta caminho modernizador’; ‘O Brasil agora está livre para crescer em ordem’. Nas colunas de opinião, especialistas afirmam que é hora de superar preconceitos e falsos temores, esquecer ideologias e antigos rancores, e trabalhar pelo crescimento do país. Analistas econômicos celebram o entusiasmo do mercado: o ministro da fazenda, recém-empossado, anunciou a disposição de privatizar a Petrobrás, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica. O BNDES seria ‘desinflado’.

Nos dias seguintes, o quadro se tornaria mais claro: DEM, PMDB e PSDB, com o endosso da maioria dos governadores recém-eleitos, em declaração conjunta, proclamam que estão unidos pelo Brasil, superando divergências menores. O crescimento não se dará sem sacrifícios, dizem, por isso, mais do que nunca, chegara o momento de unir o país. Sendo assim, comprometem-se a apoiar o novo governo sem exigir qualquer contrapartida, por mero patriotismo. Estava encerrada a era do toma-lá-dá-cá.


Na conta dos sacrifícios estava a substituição, na mídia, da liberdade inconsequente pela liberdade com responsabilidade. Os prognósticos dos editorialistas dos principais jornais coincidiam: ‘Livres das cadeias do passado, o céu é o limite para a sociedade brasileira’.

Mas não haveria fiscais ou censura. Bastaria o senso de responsabilidade patriótica de cada um. Constava também da lista de sacrifícios a tolerância provisória com o que talvez parecesse excesso, aos olhos do mundo. Por essa razão, tornara-se tão importante a missão do ministro do Exterior, intelectual renomado, respeitado nas altas rodas do país, com bom trânsito internacional, mesmo em círculos progressistas.

No dia 5 de janeiro de 2019, o presidente concede sua primeira entrevista coletiva, na qual explica a ausência de negros e mulheres no ministério: ‘O importante é que os ministros sejam competentes e patriotas. Preocupação com a cor só alimenta o racismo, em um país miscigenado como o nosso, e preocupação com sexo é coisa da esquerda.’ Sites de oposição fizeram troça da frase, provocando algum desconforto no Planalto, sobretudo depois que algumas prisões foram consideradas políticas pela imprensa estrangeira.

Na segunda semana de mandato, o ‘capitão do time’, como o presidente se autointitulava, é convidado por Trump a visitar a Casa Branca e se empolga, em cadeia de rádio e televisão: ‘Cumprindo os compromissos de campanha, a segurança e a família serão prioridades em meu governo. Os empregos virão com o tempo, não é uma coisa que se resolva de um dia para o outro (…) Os investimentos estrangeiros estão chegando em um volume jamais visto. Isso porque o mundo inteiro sabe que vamos livrar o Brasil de seu passado estatista e de sua mentalidade arcaica’.


‘‘Só há guerra civil com divisão das forças armadas, e não há nenhum sinal no horizonte. Só há guerra civil com ampla mobilização da sociedade, que tampouco existe. Lembremo-nos: Bolsonaro venceu as eleições e tem mantido apoio popular’’


O senhor vê à frente do governo do Brasil uma reprodução do que significa essa mistura entre bolsonaristas, milicianos e evangélicos que assola o Rio de Janeiro?

Sim, mas com mais três componentes nessa alquimia explosiva: as elites agrárias do Centro-Oeste, as elites rentistas de São Paulo e as camadas médias endinheiradas de todo o país, sobretudo do Sudeste e do Sul, inconformadas por terem seus privilégios afrontados. Repito: promessa, uma vez que não chegou a haver perda de privilégios nem efetiva redução de desigualdades, embora tenha havido significativa redução da pobreza. Afrontados também por políticas afirmativas antirracistas, como as cotas, que essa turma, evidentemente branca e, como se vê, racista, nunca aceitou.

Acredita que temos caldo cultural para uma guerra civil? Por exemplo, o “morro descer para o asfalto” diante da miséria avassaladora?

Só há guerra civil com a divisão das forças armadas, da qual não há nenhum sinal no horizonte. Só há guerra civil com ampla mobilização da sociedade, que tampouco existe. Pelo contrário, lembremo-nos: Bolsonaro venceu as eleições e tem mantido expressivo apoio popular. É indispensável sublinhar também um fato da maior importância e nem sempre reconhecido: há uma longa tradição fascista no Brasil.

Plinio Salgado não criou o Integralismo sozinho. Filinto Muller, chefe da polícia que torturava no Estado Novo, foi líder do governo militar durante a ditadura de 64. A TFP foi ativa ao longo da ditadura. Os integralistas voltaram a se manifestar. No Rio e em outras cidades, nos últimos 10 anos, um dos membros desse movimento é acusado de ter jogado a bomba contra a produtora Porta dos Fundos, no final de 2019. Há tradição, raízes profundas entre militares, juristas e outras corporações.


Existe paralelo no mundo para a situação que vivemos no Brasil? A imprensa corporativa naturalizar Bolsonaro, tratá-lo como um estadista, mesmo diante de comportamentos tão absurdos?

Há paralelos, sim, o que torna nossa situação ainda mais preocupante, porque mostra que está em curso um processo histórico mais amplo, o que pode implicar fortalecimento do fascismo brasileiro e expansão de suas bases de apoio, a depender do que vier a se passar nos EUA e no resto do mundo. Quanto à imprensa corporativa, tem havido oposição, mas também naturalização. Ou seja, critica-se Bolsonaro pelos “excessos”, mas jamais se afirma, a não ser por colunistas, individualmente, que se trata de fascismo.

Não se afirma com clareza a natureza fascista do bolsonarismo porque dizê-lo significaria inviabilizar aproximações futuras e alianças eventuais, ou permanentes. Quem se alia a fascista é cúmplice de genocídio. Quem se alia a governo ultra-conservador – o qual comete excessos – é apenas quem faz política “as usual”, a política de sempre, podendo-se justificar: apoia-se o que é positivo, critica-se o que é negativo.

Foi chocante a manchete da Folha perto da virada do ano (de 2019 para 2020). O jornal fazia um balanço, ouvindo “especialistas”, e identificara cento e tantas iniciativas positivas, contra cento e tantas negativas. Como havia mais negativas do que positivas, a avaliação do primeiro ano de governo era negativa. Senti um mal-estar físico ante tamanha indignidade. Destruir sociedades originárias é negativo, devastar a Amazônia é negativo, humilhar o país com a subserviência aos EUA não é muito bom, realizar a reforma da previdência é positivo, encaminhar privatizações é positivo. Três a dois contra o governo.

Homogeneização assombrosa

Imagino o que diriam do nazismo: assassinar milhões é negativo, conter a inflação é positivo. Aliás, foi o que declararam vários economistas liberais sobre a monstruosa ditadura chilena. Imagino também a avaliação que fariam ao fim de um ano em que o governo fechasse a Folha (não fariam, porque o jornal já não existiria, mas o espírito eterno da Folha sussurraria): fechar a Folha e instaurar a censura é negativo; vender a Petrobrás e o Banco do Brasil é positivo. O ano termina com empate.

Para que não pareça leviandade, minha referência aos economistas liberais, vejamos o que disse um de seus heróis, Ludwig Von Mises, em sua obra clássica Liberalismo, publicada em 1927, cinco anos depois que Mussolini começara a submeter a Itália ao seu regime: “Não se podia negar que o fascismo e movimentos semelhantes que visam o estabelecimento de ditaduras estão cheios das melhores intenções e que sua intervenção salvou, naquele momento, a civilização europeia. O mérito que o fascismo conquistou para si continuará a viver eternamente na história. Os camisas-negras irão para casa após terem realizado seu bom trabalho.

A postura da grande imprensa, conservadora e liberal, tem sido de conivência com o governo Bolsonaro, por mais que o critique. A crítica também pode normalizar o escândalo histórico, também pode naturalizar o horror.


A falta de reação popular de massa ao impeachment de Dilma, à prisão de Lula, à retirada de direitos trabalhistas se deve ao “conformismo” diante de uma situação de injustiças cometidas contra o povo negro e pobre mesmo durante os governos democráticos e populares?

Acho que tem origens mais profundas e longínquas na história. Assim como procurei analisar o fascismo bolsonarista no livro mais recente, Dentro da Noite feroz; o fascismo no Brasil, busquei compreender a distância entre o Estado (e a política) e a sociedade (as classes subalternas, em especial a população negra), desde a escravidão, no livro que lancei ano passado, O Brasil e seu Duplo (Todavia, 2019).

A distância foi maior ou menor, mas nunca foi rompida, ou seja, a participação política quase sempre ficou restrita às elites, incluindo aí as elites das camadas populares, cujo enraizamento e capacidade de mobilização foram muito menores do que teria sido necessário para promover mudanças estruturais. As mudanças deram-se pelo alto, por meio de negociações entre elites.

Nossa história foi marcada por insurreições, lutas, resistência, mas o que predominou em larga escala foi o descrédito da política. Esse abismo não se atravessa em algumas eleições e alguns governos, sobretudo em governos de composição, formados com base em acordos que inviabilizam rupturas, por mais bem intencionados que tenham sido e por mais significativas que tenham sido as conquistas. Só para dar um exemplo: houve programas sociais e cotas, valorização do salário mínimo e acesso ao crédito, mas a polícia não mudou, nem o encarceramento em massa, nem a política de drogas.


A imprensa comercial, a Lava Jato, a reação limitada das esquerdas: há um principal responsável por esse estado de coisas, essa guinada ao fascismo que estamos vivendo no Brasil de Bolsonaro?

Certamente, foi importante a campanha anti-petista, generalizando acusações ao partido e à esquerda, e insinuando, quando não afirmando, que o PT detinha praticamente o monopólio da corrupção, e imputando à corrupção a crise econômica, campanha da grande mídia, da FIESP, de grupos de ultra-direita, com apoio externo, e de políticos oportunistas.

Foi da maior importância também a Lava Jato, que começou como uma promessa de enfrentamento correto, legalista e justo à corrupção, mas descambou para a prática reiterada de violações a direitos elementares, promovendo vazamentos seletivos e escolhendo alvos e delações segundo critérios evidentemente políticos, visando, ao fim e ao cabo, estigmatizar o PT e as esquerdas, e, sobretudo, excluir Lula da eleição de 2018. Uma vergonha inominável.

O vazamento da conversa entre uma presidente e um ex-presidente, obtida fora do tempo legalmente autorizado, vazamento em si mesmo criminoso, com propósitos políticos claros, alimentando a campanha pelo impeachment, tudo isso diante do olhar complacente do STF, como qualificar esse quadro? Embuste sustentado em anuência da mais alta Corte. Estavam abertas as portas do inferno. A Lava-Jato foi nossa injustiça de transição para o fascismo.

Mas, insisto, isso não teria bastado sem que o condomínio de pastores manipuladores -alimentados pela ingenuidade petista, ou a conivência- se aliasse às elites econômicas, as quais sempre souberam muito bem quem eram esses aliados e quem era o candidato que apoiariam, porque Bolsonaro jamais escondeu o que era e é, o que pensa e como age. Esse mérito temos de lhe conceder.

É hora de unir

As camadas médias ressentidas e racistas, a massa popular que clamava por ordem (numa dimensão ontológica, como mostro no livro) e que ansiava pela superação da crise econômico-social, de que o crescimento do desemprego era a manifestação mais dura, a mídia conservadora que não demorou a acolher o fascista, naturalizando-o como um político despreparado a ser polido, classificando-o cinicamente como “conservador” (alguém que elogia torturador!), e aqueles que ficaram em cima do muro, se abstiveram, anularam seus votos.

Todos eles e elas foram corresponsáveis, e também muitas lideranças das esquerdas, que demoraram a entender o que estava acontecendo, não fizeram autocrítica a tempo, não responderam positivamente aos desafios de 2013, não souberam se renovar e ajustar suas posições e seus compromissos. Mas agora não é hora de acusar, de encontrar culpados. É hora de unir todos e todas que se disponham a resistir ao fascismo e às suas ameaças ao que nos resta de democracia.
____________________

Nenhum comentário:

Postar um comentário