"Assange não pode morrer – mesmo que morra (ou desapareça em uma cela de prisão dos Estados Unidos), essa agonia será seu triunfo, ele morrerá para viver em todos nós. Esta é a mensagem que todos nós devemos transmitir àqueles que estão o detendo: se você matar um homem, você cria um mito que continuará a mobilizar milhares de pessoas."
Há uma velha piada, da época da Primeira Guerra Mundial, sobre uma troca de telegramas entre o quartel-general do exército alemão e o austro-húngaro. De Berlim a Viena, a mensagem enviada é a seguinte: “A situação nesta parte do front é grave, mas não é catastrófica”. E a resposta de Viena é: “Aqui da nossa parte, a situação é catastrófica, mas não é grave.” Essa resposta parece oferecer um modelo de como tendemos a reagir às crises hoje, da pandemia de covid-19 aos incêndios florestais (não apenas) no oeste dos EUA e no Brasil: sim, sabemos que há uma catástrofe iminente, a mídia nos avisa disso o tempo todo, mas de alguma forma não estamos dispostos a levar a situação verdadeiramente tão a sério…
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Um caso semelhante vem se arrastando por anos: o destino de Julian Assange. Trata-se de uma catástrofe jurídica e moral. Basta lembrar de como ele é tratado na prisão: proibido de ver seus filhos e a mãe deles, impedido de se comunicar regularmente com seus advogados e preparar sua defesa e sujeito a uma situação de tortura psicológica de forma que sua própria sobrevivência se encontra ameaçada. Eles estão, sem dúvida nenhuma, matando-o suavemente, como diz a canção. Mas pouquíssimas pessoas parecem estar levando a sério essa situação, cientes de que é o nosso próprio destino está em jogo no caso de Assange. As forças que violam seus direitos são as mesmas que impedem o combate efetivo contra o aquecimento global e a pandemia. É por conta delas que a pandemia enriquece ainda mais os ricos e golpeia mais duramente os mais pobres. São as forças que exploram a pandemia de maneira implacável a fim de reforçar seu controle sobre nosso espaço social e digital, regulando e censurando-o às nossas custas – as forças que nos protegem, mas inclusive da nossa própria liberdade.
Assange lutou pela transparência pública do espaço digital, e há uma ironia cruel no fato de que agora a pandemia é usada como pretexto para isolá-lo de sua família e de seus advogados. Há uma enorme disposição de se criticar as restrições às liberdades humanas básicas impostas pela China a Hong Kong – não seria o caso de voltar o olhar a nós mesmos? Hoje vale retomar o velho ditado formulado por Max Horkheimer no final dos anos 1930: “Quem não estiver disposto a falar criticamente sobre o capitalismo deve também se calar sobre o fascismo.” Nossa versão dele agora deveria ser: quem não quiser falar sobre a injustiça cometida contra Assange deve também se calar sobre as violações de direitos humanos em Hong Kong e na Bielorrússia.
O bem planejado e bem executado assassinato de reputação de Assange é uma das razões pelas quais sua defesa nunca cresceu em um movimento amplo como o Black Lives Matter ou o Extinction Rebellion. Agora que a própria sobrevivência de Assange está em jogo, apenas um movimento desses pode (talvez) salvá-lo. Lembremos da letra (escrita por Joan Baez para a música de Ennio Morricone) de “Here’s to you”, a canção principal do filme Sacco e Vanzetti (1971): “Here’s to you, Nicola and Bart / Rest forever here in our hearts / The last and final moment is yours / That agony is your triumph” [Um brinde a vocês, Nicola e Bart / Descansem para sempre aqui em nossos corações / O último e derradeiro momento é de vocês / Essa agonia é seu triunfo]
Houve manifestações em todo o mundo em defesa de Sacco e Vanzetti – e o mesmo é necessário agora em defesa de Assange, embora em uma forma diferente. Assange não pode morrer – mesmo que morra (ou desapareça em uma cela de prisão dos Estados Unidos como um morto-vivo), essa agonia será seu triunfo, ele morrerá para viver em todos nós. Esta é a mensagem que todos nós devemos transmitir àqueles que estão o detendo: se você matar um homem, você cria um mito que continuará a mobilizar milhares de pessoas.
A mensagem que aqueles que estão atrás de Assange estão nos transmitindo é clara: “tudo é permitido (para nós)”. Por que apenas para eles? O que eles estão fazendo com Assange está mudando radicalmente o clima político. Talvez precisemos então de novos Weathermen.
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Slavoj Žižek nasceu em 1949 na cidade de Liubliana, Eslovênia. É filósofo, psicanalista e um dos principais teóricos contemporâneos.
Transita por diversas áreas do conhecimento e, sob influência principalmente de Karl Marx e Jacques Lacan, efetua uma inovadora crítica cultural e política da pós-modernidade.
Professor da European Graduate School e do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, Žižek preside a Society for Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e é diretor internacional do Instituto de Humanidades da Universidade Birkbeck de Londres.
FONTE: Blog da Editora Boitempo
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