quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Eu, Judeu, Não Perdoarei

Por Marcelo Gruman



Para mim, era inadmissível. Era inadmissível que um clube judaico abrisse voluntariamente, em nome da “liberdade de expressão”, suas portas a um candidato postulante ao mais alto cargo do poder executivo da República que sempre se orgulhou em demonstrar publicamente seu desprezo pela democracia, que homenageou, na tribuna da Câmara dos Deputados, um notório torturador, que vilipendiou a memória de um jornalista judeu assassinado nos porões da ditadura militar, que sempre fez questão de dizer que Direitos Humanos servem tão somente pra proteger “vagabundo” e pregou um cartaz na porta de seu gabinete, em Brasília, quando era deputado federal, onde se lia “Desaparecidos do Araguaia. Quem procura osso é cachorro”. Que disse, a uma colega, numa demonstração explícita de machismo e misoginia, não merecer sequer ser estuprada “por ser muito feia”.

Naquela ocasião, no clube que frequentei durante toda minha infância, o então candidato disse que foi a um quilombo e “o afrodescendente mais leve de lá pesava sete arrobas”, arrematando em seguida, para gozo da plateia de cerca de 300 pessoas, que os quilombolas “não servem pra nada, nem pra procriador servem mais”. Os refugiados também mereceram seu “carinho”, ao dizer que não se pode “abrir as portas para todo mundo”. Memória curta essa da claque de apoiadores, sublimando a recente história dos próprios antepassados. As mulheres também não foram esquecidas, quando disse “eu tenho cinco filhos. Foram quatro homens, a quinta eu dei uma fraquejada e veio uma mulher”. Misoginia na veia. E os indígenas, que devem se adequar ao processo civilizatório em curso, e os bovinos quilombolas, foram informados que não teriam “um centímetro demarcado”.



Eu ficava me perguntando o porquê de indivíduos, supostamente esclarecidos, herdeiros de uma memória étnica marcada indelevelmente pelo ódio, pelo estigma do “estrangeiro” – minha avó materna sempre dizia que não era polonesa, ela era “judia que nasceu na Polônia” -, não serem simpáticos a grupos historicamente marcados pelo mesmo processo de desumanização e marginalização. Não conseguia levar na brincadeira, como alguns argumentavam, porque era “da boca pra fora”, frases homofóbicas do tipo “prefiro que um filho meu morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí”.
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Para mim a solidariedade étnica, sobretudo a identidade judaica, deve estar associada a um “hiperbem”, um valor seminal que orienta todo e qualquer comportamento individual. Ser judeu é importante, é um valor do qual não abro mão, mas este estar no mundo, essa experiência judaica, está submetida ao exercício da defesa de uma sociedade democrática, que é generosa às diferenças, que não submete politica e culturalmente supostas “minorias” em nome da “maioria”. Que prefere pontes a muros, que acredita na porosidade das fronteiras, físicas e simbólicas. Que condena a banalização do mal. Que, bem ao estilo judaico, está sempre perguntando porque perguntar é desafiar as verdades estabelecidas e as verdades estabelecidas só servem a regimes autoritários amancebados com a censura e o silêncio.

Mas esta relação, que faz todo sentido pra mim e para muitos judeus que conheço, não é necessária, natural, inexorável, óbvia. E por que não é assim? Simplesmente porque não existe essa tal de “comunidade judaica”.

Esse conceito de “comunidade” nos remete à ideia de um ente homogêneo, um bloco maciço sem fretas e porosidade, onde reina a paz, a tranquilidade, o consenso, a solidariedade inquebrantável, certo ar bucólico e até enfado. A narrativa étnica que constrói simbolicamente este discurso, tanto para dentro quanto para fora, ignora e induz à ignorância de múltiplas formas de expressão da identidade judaica no Brasil. O estereótipo, como qualquer estereótipo, reduz e empobrece nossa capacidade de interpretar a realidade. Daí não fazer sentido algum a expressão “os judeus brasileiros” ou “a comunidade judaica”. Afinal, de que judeus se está falando? De qual comunidade se está falando? Não é tudo “farinha do mesmo saco”. Assim como não é a mesma coisa ser judeu, israelita, sionista e israelense.

Começo a entender – ou acho que começo a entender - a opção que muitos judeus fizeram pelo candidato da extrema-direita. Eles não veem contradição alguma entre sua condição judaica e o desprezo pelos direitos humanos, entre sua condição atávica de “judeu errante” e a crescente perseguição sofrida pelas religiões de matriz africana, pela população LGBTQI, pela população indígena assassinada “silenciosamente” no norte do país, pelas populações ribeirinhas expulsas de seu território por grileiros e “agentes civilizatórios” do agronegócio. Já disse o presidente, em sua proverbial erudição, que o “interesse na Amazônia não é no índio nem na porra da árvore”. Farinha pouca, meu pirão primeiro. Cada um sabe onde lhe aperta o sapato. Salve-se quem puder.

Esta cegueira moral de parcela dos judeus brasileiros - associada incontestavelmente à identificação com a agenda ultraliberal do governo, fator não menos importante na definição do voto, ou ao slogan “Tudo, menos o PT” – contribuiu para a normalização e legitimação do discurso do ódio e da intolerância, como no recente episódio de plágio de um discurso do Ministro da Propaganda da Alemanha Nazista, Joseph Goebbels, pelo agora ex-Secretário Especial da Cultura, no revisionismo histórico expresso nas palavras do Ministro das Relações Exteriores ao afirmar que o nazismo é uma ideologia de esquerda e no empoderamento de grupos até então relegados aos porões do mundo virtual, gente que se vê à vontade para usar braçadeiras com suásticas em shopping centers.

O antissemitismo de direita, já velho conhecido de guerra, ganhou a companhia do antissemitismo de esquerda. A demissão do Secretário Especial da Cultura foi atribuída à gritaria dos “judeus brasileiros” e da influência do embaixador de Israel no Brasil. “Mexeram com a comunidade errada”, bradaram uns. Muita gente que se diz progressista, numa atitude covarde e infame, passou a cobrar do “povo escolhido” – associando equivocadamente religião e etnia – admissão de culpa pelo espetáculo grotesco, afinal de contas, “vocês (os judeus) elegeram esse governo”. Judeus são ricos, certo? Controlam a mídia e as grandes finanças internacionais, não é mesmo?

Sartre dizia que, se o judeu não existisse, o antissemita o inventaria. Hoje, no Brasil, o antissemita, por mais canalha que seja – e sempre o será, de direita ou de esquerda – não precisa cansar sua beleza para produzir o seu “outro” odiado porque a ajuda vem de dentro dos muros do gueto moral dos que apoiaram a eleição de um governo brutamontes. Eles atualizam a figura do “self-hating Jew”, facilitando a vida de quem quer exterminá-los, mais dia, menos dia. Lembremos Brecht.

Envergonham meus antepassados, matam-nos novamente, são cúmplices do filme de terror que vivemos nesse país miserável. Têm as mãos sujas. Sabiam muito bem aquilo que estavam fazendo. Agiram voluntariamente. Ajudam a cavar a própria cova. A minha cova. A cova dos judeus decentes que estavam na frente do Clube Hebraica protestando contra a presença do Mal encarnado.

Não esquecerei.

Não perdoarei.
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Fonte:  Blog Des-Construindo Marcelo

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