Slavoj Žižek visitou a Liberty Plaza, em Nova Iorque, para falar ao acampamento de manifestantes do movimento Occupy Wall Street
(Ocupe Wall Street), que vem protestando contra a crise financeira e o
poder econômico norte-americano desde o início de setembro deste ano.
O filósofo nos enviou a íntegra de seu discurso para publicarmos em nosso Blog, que segue abaixo em tradução de Rogério Bettoni.
***
Não se apaixonem por si mesmos, nem pelo momento agradável que
estamos tendo aqui. Carnavais custam muito pouco – o verdadeiro teste de
seu valor é o que permanece no dia seguinte, ou a maneira como nossa
vida normal e cotidiana será modificada. Apaixone-se pelo trabalho duro e
paciente – somos o início, não o fim. Nossa mensagem básica é: o tabu
já foi rompido, não vivemos no melhor mundo possível, temos a permissão e
a obrigação de pensar em alternativas. Há um longo caminho pela frente,
e em pouco tempo teremos de enfrentar questões realmente difíceis –
questões não sobre aquilo que não queremos, mas sobre aquilo que
QUEREMOS. Qual organização social pode substituir o capitalismo vigente?
De quais tipos de líderes nós precisamos? As alternativas do século XX
obviamente não servem.
Então não culpe o povo e suas atitudes: o problema não é a corrupção
ou a ganância, mas o sistema que nos incita a sermos corruptos. A
solução não é o lema “Main Street, not Wall Street”, mas sim mudar o
sistema em que a Main Street não funciona sem o Wall Street. Tenham
cuidado não só com os inimigos, mas também com falsos amigos que fingem
nos apoiar e já fazem de tudo para diluir nosso protesto. Da mesma
maneira que compramos café sem cafeína, cerveja sem álcool e sorvete sem
gordura, eles tentarão transformar isto aqui em um protesto moral
inofensivo. Mas a razão de estarmos reunidos é o fato de já termos tido o
bastante de um mundo onde reciclar latas de Coca-Cola, dar alguns
dólares para a caridade ou comprar um cappuccino da Starbucks que tem 1%
da renda revertida para problemas do Terceiro Mundo é o suficiente para
nos fazer sentir bem. Depois de terceirizar o trabalho, depois de
terceirizar a tortura, depois que as agências matrimoniais começaram a
terceirizar até nossos encontros, é que percebemos que, há muito tempo,
também permitimos que nossos engajamentos políticos sejam terceirizados –
mas agora nós os queremos de volta.
Dirão que somos “não americanos”. Mas quando fundamentalistas
conservadores nos disserem que os Estados Unidos são uma nação cristã,
lembrem-se do que é o Cristianismo: o Espírito Santo, a comunidade livre
e igualitária de fiéis unidos pelo amor. Nós, aqui, somos o Espírito
Santo, enquanto em Wall Street eles são pagãos que adoram falsos ídolos.
Dirão que somos violentos, que nossa linguagem é violenta,
referindo-se à ocupação e assim por diante. Sim, somos violentos, mas
somente no mesmo sentido em que Mahatma Gandhi foi violento. Somos
violentos porque queremos dar um basta no modo como as coisas andam –
mas o que significa essa violência puramente simbólica quando comparada à
violência necessária para sustentar o funcionamento constante do
sistema capitalista global?
Seremos chamados de perdedores – mas os verdadeiros perdedores não
estariam lá em Wall Street, os que se safaram com a ajuda de centenas de
bilhões do nosso dinheiro? Vocês são chamados de socialistas, mas nos
Estados Unidos já existe o socialismo para os ricos. Eles dirão que
vocês não respeitam a propriedade privada, mas as especulações de Wall
Street que levaram à queda de 2008 foram mais responsáveis pela extinção
de propriedades privadas obtidas a duras penas do que se estivéssemos
destruindo-as agora, dia e noite – pense nas centenas de casas
hipotecadas…
Nós não somos comunistas, se o comunismo significa o sistema que
merecidamente entrou em colapso em 1990 – e lembrem-se de que os
comunistas que ainda detêm o poder atualmente governam o mais implacável
dos capitalismos (na China). O sucesso do capitalismo chinês liderado
pelo comunismo é um sinal abominável de que o casamento entre o
capitalismo e a democracia está próximo do divórcio. Nós somos
comunistas em um sentido apenas: nós nos importamos com os bens comuns –
os da natureza, do conhecimento – que estão ameaçados pelo sistema.
Eles dirão que vocês estão sonhando, mas os verdadeiros sonhadores
são os que pensam que as coisas podem continuar sendo o que são por um
tempo indefinido, assim como ocorre com as mudanças cosméticas. Nós não
estamos sonhando; nós acordamos de um sonho que está se transformando em
pesadelo. Não estamos destruindo nada; somos apenas testemunhas de como
o sistema está gradualmente destruindo a si próprio. Todos nós
conhecemos a cena clássica dos desenhos animados: o gato chega à beira
do precipício e continua caminhando, ignorando o fato de que não há chão
sob suas patas; ele só começa a cair quando olha para baixo e vê o
abismo. O que estamos fazendo é simplesmente levar os que estão no poder
a olhar para baixo…
Então, a mudança é realmente possível? Hoje, o possível e o
impossível são dispostos de maneira estranha. Nos domínios da liberdade
pessoal e da tecnologia científica, o impossível está se tornando cada
vez mais possível (ou pelo menos é o que nos dizem): “nada é
impossível”, podemos ter sexo em suas mais perversas variações; arquivos
inteiros de músicas, filmes e seriados de TV estão disponíveis para
download; a viagem espacial está à venda para quem tiver dinheiro;
podemos melhorar nossas habilidades físicas e psíquicas por meio de
intervenções no genoma, e até mesmo realizar o sonho tecnognóstico de
atingir a imortalidade transformando nossa identidade em um programa de
computador. Por outro lado, no domínio das relações econômicas e
sociais, somos bombardeados o tempo todo por um discurso do “você não pode”
se envolver em atos políticos coletivos (que necessariamente terminam
no terror totalitário), ou aderir ao antigo Estado de bem-estar social
(ele nos transforma em não competitivos e leva à crise econômica), ou se
isolar do mercado global etc. Quando medidas de austeridade são
impostas, dizem-nos repetidas vezes que se trata apenas do que tem de
ser feito. Quem sabe não chegou a hora de inverter as coordenadas do que
é possível e impossível? Quem sabe não podemos ter mais solidariedade e
assistência médica, já que não somos imortais?
Em meados de abril de 2011, a mídia revelou que o governo chinês
havia proibido a exibição, em cinemas e na TV, de filmes que falassem de
viagens no tempo e histórias paralelas, argumentando que elas trazem
frivolidade para questões históricas sérias – até mesmo a fuga fictícia
para uma realidade alternativa é considerada perigosa demais. Nós, do
mundo Ocidental liberal, não precisamos de uma proibição tão explícita: a
ideologia exerce poder material suficiente para evitar que narrativas
históricas alternativas sejam interpretadas com o mínimo de seriedade.
Para nós é fácil imaginar o fim do mundo – vide os inúmeros filmes
apocalípticos –, mas não o fim do capitalismo.
Em uma velha piada da antiga República Democrática Alemã, um
trabalhador alemão consegue um emprego na Sibéria; sabendo que todas as
suas correspondências serão lidas pelos censores, ele diz para os
amigos: “Vamos combinar um código: se vocês receberem uma carta minha
escrita com tinta azul, ela é verdadeira; se a tinta for vermelha, é
falsa”. Depois de um mês, os amigos receberam a primeira carta, escrita
em azul: “Tudo é uma maravilha por aqui: os estoques estão cheios, a
comida é abundante, os apartamentos são amplos e aquecidos, os cinemas
exibem filmes ocidentais, há mulheres lindas prontas para um romance – a
única coisa que não temos é tinta vermelha.” E essa situação,
não é a mesma que vivemos até hoje? Temos toda a liberdade que desejamos
– a única coisa que falta é a “tinta vermelha”: nós nos “sentimos
livres” porque somos desprovidos da linguagem para articular nossa falta
de liberdade. O que a falta de tinta vermelha significa é que, hoje,
todos os principais termos que usamos para designar o conflito atual –
“guerra ao terror”, “democracia e liberdade”, “direitos humanos” etc.
etc. – são termos FALSOS que mistificam nossa percepção da situação em
vez de permitir que pensemos nela. Você, que está aqui presente, está
dando a todos nós tinta vermelha.
Para aqueles que se interessaram pelo conteúdo do discurso, recomendamos a leitura de Primeiro como tragédia, depois como farsa (Boitempo,
2011), livro no qual Žižek discute a crise financeira de 2008 e a
hipótese do comunismo em nossos dias atuais. O livro já está à venda em
versão eBook na Livraria Cultura e na Gato Sabido.
Curiosidade: a camiseta vermelha que Žižek usa durante seu discurso
foi um presente da Boitempo ao filósofo, durante sua última passagem
pelo Brasil em maio deste ano. Ela estampa a caricatura de Karl Marx e
Friedrich Engels feita por Cássio Loredano para a capa de A ideologia alemã.
***Slavoj Žižek nasceu na cidade de Liubliana, Eslovênia, em 1949. É filósofo, psicanalista e um dos principais teóricos contemporâneos. Transita por diversas áreas do conhecimento e, sob influência principalmente de Karl Marx e Jacques Lacan, efetua uma inovadora crítica cultural e política da pós-modernidade. Professor da European Graduate School e do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, Žižek preside a Society for Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e é um dos diretores do centro de humanidades da University of London. Dele, a Boitempo publicou Bem-vindo ao deserto do Real! (2003), Às portas da revolução (escritos de Lenin de 1917) (2005), A visão em paralaxe (2008), Lacrimae rerum (2009) e os mais recentes Em defesa das causas perdidas e Primeiro como tragédia, depois como farsa(ambos de 2011). Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas-feiras.
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