Por John Donne
"Talvez aquele para quem estes sinos dobram esteja tão mal que ele sequer sabe que dobram por ele. E talvez eu possa me achar muito melhor do que sou, como fazem aqueles que me rodeiam, e ao ver o meu estado podem tê-lo feito dobrar por mim, e eu nem saiba disso."
A Igreja é católica, universal, e assim são todas as suas ações; tudo o que ela faz pertence a todos. Quando batiza uma criança, esta ação diz respeito a mim, pois esta criança é ligada a essa cabeça que também é a minha, enxertada neste corpo do qual sou um membro. E quando a Igreja enterra um homem, esta ação também me diz respeito; toda a humanidade provém de um autor, e forma um único livro; quando um homem morre, um capítulo não é arrancado do livro mas traduzido para uma linguagem melhor, e cada capítulo deve ser assim traduzido; Deus emprega inúmeros tradutores; algumas peças são traduzidas pela idade, algumas pela doença, algumas pela guerra, algumas pela justiça, mas a mão de Deus está em cada tradução, e sua mão reunirá outra vez todas as nossas folhas espalhadas formando a biblioteca onde cada livro deverá permanecer aberto aos outros, da mesma maneira que, quando o sino toca chamando para o sermão, não exorta apenas o pregador mas também toda a congregação; nos chama a todos, e ainda mais a mim, que sou trazido para perto da porta por esta doença.
Houve uma disputa e mesmo um processo (onde se misturaram piedade e dignidade, religião e opinião) sobre qual ordem religiosa deveria tocar primeiro chamando para as orações no início da manhã, e foi determinado que tocaria primeiro aquela que acordou mais cedo. Se entendermos bem a dignidade deste sino, dessas badaladas para a nossa oração da noite, ficaríamos felizes tornando-as nossas, madrugando, nessa aplicação, que poderia ser nossa e também sua, como de fato é. O sino toca por ele, e pelas coisas que fez; e embora intermitente, ainda nesse minuto, como no momento em que tocou sobre ele, ele já está unido a Deus. Quem não levanta seu olhar para o sol quando ele nasce? Mas quem tira o olho de um cometa quando irrompe no céu? Que não inclina seu ouvido a qualquer sino, que toca em qualquer ocasião? Mas quem pode removê-lo desse sino no momento em que um pedaço de si próprio está passando para fora deste mundo?
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Nem podemos chamar isso de mendicância de miséria, ou empréstimo de miséria, como se não fossemos nós mesmos suficientemente miseráveis, mas precisássemos buscar mais na casa ao lado e tomar para nós a miséria dos nossos vizinhos. Na verdade esta seria uma cobiça desculpável, se o fizéssemos, pois a desgraça é um tesouro do qual poucos homens têm o suficiente. Nenhum homem tem desgraças o suficiente, eles não são amadurecidos e aprimorados por elas, e apelam a Deus por essa aflição. Se um homem levar um tesouro em ouro maciço ou em barras, mas não tiver algum cunhado em moeda atual, seu tesouro não vai custeá-lo durante sua viagem. A atribulação é tesouro em sua natureza, mas não é moeda corrente em seu uso, exceto se ficarmos mais próximos e mais próximos de nossa moradia, o céu, por meio dela. Uma outra pessoa pode estar doente também, à beira da morte, e esta aflição pode estar em suas entranhas, como o ouro numa mina, e não ser de uso para ela; mas este sino que me conta sobre a sua aflição, desenterra este ouro e aplica-o em mim: se por esta consideração sobre o perigo que outro corre, tomo o meu próprio em contemplação, me asseguro a mim mesmo e faço o meu recurso a meu Deus, que é a nossa única segurança.
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FONTE: Blog Trapiche dos Outros. "Nunc Lento Sonitu Dicunt, Morieris" , Meditação 17, do escritor e pastor anglicano John Donne, em 1624.
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FONTE: Blog Trapiche dos Outros. "Nunc Lento Sonitu Dicunt, Morieris" , Meditação 17, do escritor e pastor anglicano John Donne, em 1624.