Para Kátia, ‘antropóloga’ de jornal e agora ‘historiadora’ do Senado, a invasão de terras configura prática da Idade Média – desconsiderando o fato de que uma das características da chamada Idade Média era a alta concentração de terras
É um bairro sujo
Onde os urubus têm asas
E eu não tenho casa
(...)
(Chico Science e Nação Zumbi, Manguetown)
Renato Santana* para o Brasil de Fato
Ouvir a senadora Kátia Abreu (PSD/TO) falar deveria conceder o direito de indenização pela existência a qualquer ser humano. Como a líder dos latifundiários brasileiros pontuou, na última quinta (11), na sessão da Comissão de Agricultura de Reforma Agrária do Senado (leia o pronunciamento na íntegra ao final do artigo ou aqui), fala-se em "terceiro milênio", mesmo que isso não signifique nada já que os pés de todos e todas estão, de acordo com ela, "na lama".
Claro, Kátia se referia a ela mesma, que está, junto com sua corriola sádica de latifundiários, com a cabeçorra de boi no terceiro milênio e os pés de porco na lama, porque como pode ainda ocorrer “invasões de terra”?, pergunta a ilustre senadora. Para Kátia, ‘antropóloga’ de jornal e agora ‘historiadora’ do Senado, isso, a invasão de terras, configura prática da Idade Média – desconsiderando o fato de que uma das características da chamada Idade Média era a alta concentração de terras.
Aos fatos, se na lama estamos é porque a história do Brasil é a história da concentração de terras e da desigualdade. Se somos subdesenvolvidos, como a senadora disse, não é porque nosso povo luta por terra, mas porque os poucos latifundiários do autodenominado agronegócio plantam mais soja do que tomate, porque é mais lucro vender o grão para os chineses alimentarem seus porcos do que o tomate para um consumo a preços viáveis ao povo. O tomate aqui é um exemplo, mas o ‘celeiro de alimentos’ propagandeado pela senadora e sua fazenda modelo trata-se do monocultivo em larga escala sufocando a plantação diversificada de comunidades camponesas, indígenas, quilombolas, ribeirinhas, pescadoras.
Se na lama estamos é porque nas plantações de cana de açúcar existem incontáveis trabalhadores e trabalhadoras em situações análogas a dos escravos e escravas que serviram aos senhores de engenho, aos latifundiários de antanho, aos senhores de terras da qual a senadora e sua corriola herdam a vilania, a mentira, a força bruta, a ignorância. Na lama estamos porque nos fornos das usinas de cana incontáveis presos políticos foram incinerados.
Na lama estamos porque todas as vezes em que o Brasil teve chances de se livrar do atraso foi impedido por golpes militares e da elite agrária, atrasada, conservadora. E agora, há dez anos, quando considerável parcela da sociedade brasileira acreditava que mais um momento para se livrar do atraso tinha chegado, o governo e seus aliados decidiram trazer a senadora e sua corriola para o centro de um projeto de desenvolvimento para poucos, baseado em commodities e pasto e soja e cana e atraso e matança.
Na lama, que a senadora Kátia Abreu chafurda com sua corriola de porcos espúrios, estamos porque os latifundiários contratam pistoleiros para assassinar e matar indígenas, quilombolas, camponeses, sem terra, extrativistas e toda sorte de gentes que preservam o meio ambiente, criam formas autênticas de vida e envolvimento social. Assim acontece desde que esse continente foi invadido e suas populações vilipendiadas. Matam homens e mulheres, ocultam corpos, sustentam gangues de pistoleiros lotados em balcões de morte travestidos em empresas de segurança. Essa é a lama a qual estamos não só com os pés, mas com os corações.
A senadora Kátia Abreu fala de que lama? Será a lama das grilagens de terras, roubos descarados de milhões de hectares, colonizações forçadas e das poucas famílias que estão por trás do avanço das fronteiras de soja, cana e pasto sobre terras de ocupação tradicional e camponesa? Essa lama é a lama do pasto em que se refestela a corja latifundiária, monocultivista, que move céus e terras para usar agrotóxicos cada vez mais destrutivos ao meio ambiente natural e social; que lança em rios venenos para matar de sede comunidades que lutam por parcos hectares de terras onde seus ancestrais jazem em meio às raízes da soja que desertifica paragens e não deixa nem ao menos a sombra da vida que um dia habitou o local.
Na lama estão as centenas de comunidades indígenas às margens de estradas, vendo crianças morrerem de frio e fome. Na lama estão os povos que perdem seus filhos e filhas para a desnutrição, que vivem sem saneamento básico e quando resistem são oprimidos pela pistolagem e agora por um Estado de Exceção que autoriza, por decreto da presidenta Dilma Rousseff, a Força Nacional a reprimir caso se oponham a construção de grandes projetos. Na lama estão os corpos de Nísio Gomes Guarani Kaiowá, José Cláudio e Maria do Espírito Santo, irmã Dorothy Stang, entre outras vítimas do latifúndio, assassinados a mando de fazendeiros e grileiros de terras.
Na lama estão as crianças e adolescentes exploradas sexualmente pelo ex-vice-presidente da CNA, Assuero Veronez, acusado pela Polícia Federal de ser cliente de uma rede internacional de exploração. Na lama estão os pequenos, os periféricos, os explorados, os maltratados, os escravizados, os expulsos de suas terras, os que não são vistos pela cegueira da Justiça, os que nunca souberam o que é a Constituição, apesar da fome de tudo que sentem ser uma afronta a Carta Magna, lançada à lama pelas mãos das elites e dos latifundiários. Essa lama é nada mais nada menos que o mangue das lutas populares, o mangue que dará vida a um país diferente, livre da sujeira e da imundice de Kátia Abreu e sua corriola de urubus.
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*Renato Santana é jornalista, editor do jornal indigenista Porantim.
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