sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Estados Unidos é país com mais pobres do 'clube dos ricos'

por Pablo Uchoa (Da BBC Brasil em Washington)


James Haskins trabalha como voluntário em almoço de Ação de Graças
 para a população carente.

Em um salão bem-iluminado e de tijolos aparentes, com fotos ilustrando as paredes e um quadro a óleo de Martin Luther King sobre um piano recostado a um canto, um voluntário dispõe pratos de sobremesa com fatias de tortas de abóbora e batata-doce sobre mesas comunitárias.

Guardanapos coloridos e arranjos de cartolina imitando abóboras marcam os assentos para a última leva de comensais que vieram para o almoço especial de Dia de Ação de Graças oferecido gratuitamente pela organização SOME (So Others Might Eat – "Para que outras possam se alimentar", em tradução livre), em Washington.

Em geral ausente do debate público – até, surpreendentemente, em ano de campanha eleitoral –, a situação dos mais necessitados reaparece, sazonalmente, no feriado que comemora a primeira refeição comum dos peregrinos e povos nativos que fizeram a história deste país.

Mas para organizações como esta, a preocupação nunca sai do radar. Este refeitório que servia, antes da crise econômica, em torno de 200 mil refeições por ano – café da manhã e almoço –, hoje serve quase 250 mil. A demanda subiu proporcionalmente à crise do emprego, que empurrou milhões de americanos para a pobreza.

Segundo os números do censo, os Estados Unidos tinham 46,2 milhões de pobres em 2011, o equivalente a 15% da sua população. Em 2009, o nível era de 13,2%.

De acordo com a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), o país mais rico do mundo é também, dentro do clube dos ricos, o que conta com a maior proporção de pobres.
Pobre país rico

Há várias faixas de renda para a definição de quem é ou não pobre nos EUA. Para um indivíduo e um casal com dois filhos, por exemplo, o nível de pobreza é definido por ganhos anuais de até US$ 11.702 e US$ 22.811, respectivamente.

O presidente Obama trabalhou em um refeitório da SOME em 2010.

Rendas inferiores a 50% destas faixas configuram pobreza aguda ("deep poverty"), dentro da qual estão 6,6% da população – o equivalente a 20,4 milhões de pessoas – contra 6,3% em 2009.

Um estudo recente da organização National Poverty Center identificou inclusive um contingente de 1,46 milhão de famílias – com 2,8 milhões de crianças – vivendo em pobreza extrema segundo as definições do Banco Mundial, ou seja, com menos de US$ 2 por pessoa por dia em um determinado mês.

Especialistas ressalvam que parte desses efeitos negativos é compensada por assistência que não entra nas estatíticas de renda, tais como a distribuição de vale refeições, moradia e deduções fiscais.

Austin Nichols, do instituto de pesquisa Urban Institute, em Washington, estima que se os vale-refeições e isenções fiscais fossem contabilizados, os EUA teriam 9,6 milhões de pobres a menos.

"De certa forma, isso faz com que os pobres nos EUA estejam em uma situação melhor que em outros países", disse Nichols à BBC Brasil, falando por telefone de Roma, onde participava de uma conferência da ONU sobre a fome.

"A razão para isso é que nosso sistema de benefícios se afastou das transferências de renda, nas quais os países europeus se apoiam mais que os EUA."

Mas infelizmente, escreve Nichols em sua análise, muitas medidas deste tipo, erguidas para conter os efeitos da crise econômica no seu início, estão expirando.

E ao longo deste ano, enquanto muito se falou dos incentivos para a classe média e o corte ou não de impostos para os mais ricos, poucas vezes foi mencionada a carência das pessoas que mais dependem delas.

Dificuldades

Funcionário prepara mesas de refeitório da organização 
beneficente americana Some

Algumas horas visitando entidades como a SOME indicam o tamanho do desafio. Além do refeitório, a organização oferece uma miríade de serviços para os mais pobres, incluindo duchas gratuitas, doações de roupas, sapatos e comidas, serviços de saúde primária, dental e mental, e assistência com a busca de moradias e serviços sociais.

James Haskins, que faz parte de uma igreja Batista em Maryland e esteve entre os voluntários no Dia de Ação de Graças, diz que as necessidades dos mais pobres não são apenas materiais.

"Não é apenas uma questão de falta de comida, ou de moradia, ou de ter o que comer", disse Haskins, ao lado de uma foto que mostra o presidente Barack Obama servindo almoço naquele mesmo refeitório, em 2010.

"Para eles, é uma questão de tentar fazer parte de alguma coisa, saber que podem contar com alguém".

A porta-voz da entidade, Nechama Masliansky, disse à BBC Brasil que a organização atende anualmente a 10 mil indivíduos diferentes, que utilizam seus serviços em muitos casos inúmeras vezes na semana.

A pobreza persistente ainda é um problema relativamente pequeno nos EUA, e muitos acabam se encontrando nesta situação após perder o emprego ou a capacidade de trabalhar. A falta de moradias acessíveis em cidades como a capital federal empurram famílias inteiras para as ruas.

Aos 48 anos, o ex-pedreiro Edward Fischer, hoje com 60, teve um ombro deslocado em um acidente. Passou quatro anos vivendo na casa da mãe e não conseguia retornar ao trabalho – até processar o antigo empregador e conseguir verba suficiente para pagar as contas e conseguir viver no seu próprio lar.

"Já cheguei a vir neste refeitório várias vezes por semana", disse Fischer, em meio a garfadas. "Hoje, ainda venho de vez em quando."

Longo prazo

Pintura de Martin Luther King decora refeitório,
 em Washington.

Nichols escreve que em 2009 e 2010, apenas 4,8% dos pobres permaneceram nesta situação por todos os 24 meses. Mas uma das características da mais recente crise econômica são os longos períodos em que os trabalhadores passam desempregados.

Em agosto último, 40% dos desempregados passavam mais de seis meses sem trabalho – o tempo do recebimento do seguro-desemprego regular. Nunca, desde os anos 1960, o percentual superou muito mais que 25%.

Para os especialistas, uma das consequências mais perversas desta pobreza persistente é o efeito que terá sobre as gerações futuras.

"Crianças criadas sob o espectro da pobreza são mais suscetíveis a continuar pobres, abandonar a escola, ter gravidez indesejada na adolescência e viver instabilidades no mercado de trabalho", diz outro estudo do Urban Institute.

Nos EUA, a pobreza atinge 22% das crianças – sendo que entre as crianças negras o percentual chegava a 37,4% em 2011. De certa forma, é um reflexo da pobreza entre mães solteiras chefes de família, que superava 31%.

Nichols vê nesses dados um risco à possibilidade de mobilidade social que deu início ao sonho americano.

Ele diz que, enquanto a classe média ou mesmo uma parte dos pobres ainda pode almejar a subir na pirâmide da sociedade, os 10% no chão da linha da pobreza já nascem, virtualmente, com o futuro selado de continuar sendo pobre.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Salve Joaquim, Axé Barbosa

por Cynara Menezes


(foto: STF)

Acredito menos em destino do que em sincronicidade, esta coreografia de acasos que permite a alguns acontecimentos se tornarem emblemáticos. E é, sem sombra de dúvida, emblemático que a posse do primeiro presidente negro da história do STF (Supremo Tribunal Federal) aconteça justamente na Semana da Consciência Negra. Não houve planejamento algum nisso: seu antecessor, Carlos Ayres Britto, faz aniversário no dia 18 de novembro. Completou 70 anos domingo, teria que se aposentar. Uma total coincidência, portanto, com o Dia Nacional da Consciência Negra, celebrado hoje. Joaquim toma posse na quinta-feira 22.

Nada deve empanar o brilho da posse de Joaquim Barbosa no STF. Trata-se não só do primeiro negro a ocupar a presidência da mais alta Corte do País, é o primeiro negro a ocupar um cargo na cima do Poder no Brasil. A presidência do Supremo é um dos três cargos mais importantes em um sistema tripartite: os outros dois são o presidente do Congresso (Legislativo) e o presidente da República (Executivo). Em caso de impedimento do presidente da República, o chefe do Judiciário é o quarto na linha sucessória. Nunca houve, portanto, um cidadão negro em posição tão importante no País. É preciso comemorar, não importam as divergências com o ministro.

Quando, em 2003, o presidente Lula indicou Barbosa para o STF, a iniciativa foi elogiadíssima. Mineiro de Paracatu, o futuro ministro, então procurador federal, havia tido uma trajetória fulgurante: foi gráfico no Senado, oficial de chancelaria no Itamaraty, assessor jurídico do Serpro e consultor jurídico do Ministério da Saúde. Barbosa se formou em Direito pela Universidade de Brasília e é mestre e doutor em Direito público pela Universidade de Paris-2. Considerado um dos principais defensores da adoção do sistema de cotas nas universidades, não se salvou de ouvir dos jornalistas, na época, a pergunta de que iria ser membro da “bancada governista” no Supremo.

A intenção de Lula, tanto no STF quanto na Procuradoria-Geral, foi fazer o contrário de seu antecessor Fernando Henrique Cardoso, e atender aos pedidos do Ministério Público para que este fosse independente. Não podemos esquecer que, com FHC no cargo, o procurador-geral era conhecido pelo epíteto de “engavetador-geral”. O Judiciário independente que o PT pregava antes de chegar ao poder e que se consolidou com a maioria das indicações feitas por Lula quando presidente, personifica-se na figura de Joaquim Barbosa. Exigir o contrário dele só porque Lula o indicou seria exigir-lhe servilismo. E servil é uma palavra que não orna com Barbosa.

Tenho certeza que sua presença como presidente do Supremo, saudada neste momento pelos poderosos de direita, não continuará a ser tão confortável daqui para a frente. Assim como incomodou agora os poderosos ditos de esquerda, mais adiante Joaquim irá cutucar outros. A mão pesada que o ministro demonstrou no episódio do chamado mensalão não será, tenho certeza, ocasião única e de um lado só. Muitos dos que agora aplaudem Joaquim Barbosa por haver punido membros do PT terão razões para lamentar sua presença na presidência do Supremo, estou segura.

A entrevista da jornalista Monica Bergamo com o ministro, publicada em outubro pela Folha de S.Paulo, foi elucidativa por vários motivos. O mais importante deles, para mim, foi esclarecer o espectro ideológico por onde se move Joaquim Barbosa. Ao contrário do que muitos, da esquerda e da direita, gostariam de acreditar, percebe-se que Joaquim não é um conservador. Pelo contrário. Se eu fosse arriscar o partido que goza da simpatia do ministro atualmente, diria que é o PSOL, saído da costela do PT justamente durante a crise do chamado “mensalão”.

Na entrevista, Barbosa declarou seu voto em Lula em 2002 e em 2006, e em Dilma, em 2010. E negou que, mesmo após o escândalo, tivesse se arrependido disso, diante dos “avanços inegáveis” dos últimos dez anos. A quem insinuava que estava seduzido pela mídia, o ministro também bateu nela, e duro. “A imprensa brasileira é toda ela branca, conservadora. O empresariado, idem. Todas as engrenagens de comando no Brasil estão nas mãos de pessoas brancas e conservadoras”, disse.

As frases de Barbosa foram, de certa forma, um tapa de luva nos auto-denominados “esquerdistas” que o atacam desde agosto por conta do julgamento do mensalão. É normal que sobretudo petistas achem que o relator exagerou na dose –para não falar na dosimetria. O que não é normal, é triste e vexaminoso é a apelação à cor da pele de Joaquim Barbosa por parte de gente, repito, que se pretende “de esquerda”. Não podendo diminuí-lo profissionalmente, já que o ministro possui um currículo brilhante, apelam para a questão racial. Nas redes sociais (sinto até vergonha alheia por ter de escrever isso), Barbosa chegou a ser chamado de “capitão-do-mato”, aquele negro que localizava os escravos fugitivos. Triste: estas pessoas são as mesmas que se indignaram quando o presidente Lula foi agredido no Twitter e Facebook por ser nordestino.

Não foram os únicos. Os que agora elogiam o ministro como “herói” já o chamaram de arrogante e insinuaram que era preguiçoso por não comparecer às sessões do Supremo por causa de dores nas costas. A revista que trouxe Joaquim Barbosa na capa agora, dois anos atrás o criticava por frequentar botecos de Brasília e até jogar futebol nos fins-de-semana enquanto estava de licença médica. Comparou-o, inclusive, com o falecido ministro Menezes Direito, que, “mesmo doente”, trabalhava. Menos mal que o ministro Barbosa deixou claro que não se deixa seduzir pela mídia branca e conservadora.

A mensagem racista subliminar tanto no uso do termo “arrogante” quanto nas insinuações de “preguiça” do ministro remontam à figura do “preto ousado” ou do “preto preguiçoso”, de utilização comum para atingir os negros desde os tempos do cativeiro. Somente no dia em que as críticas a um desafeto não fizerem referência alguma, direta ou velada, à cor de sua pele, o Brasil terá superado o racismo.

O novo presidente do Supremo é, quer queiram, quer não, a figura máxima deste Dia Nacional da Consciência Negra. Qualquer comemoração terá que passar por ele. Trata-se de um acontecimento histórico sem precedentes, é preciso deixar as diferenças de lado para celebrar. Joaquim Barbosa é, sim, um exemplo para qualquer menino e menina negros deste país. Espelhem-se nele, crianças. Vale a pena. Salve Joaquim, Axé Barbosa.

Outros artigos de Cynara podem ser lidos no site: http://www.socialistamorena.com.br

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

O poder do cidadão

Herbert de Souza - Betinho

A fome é a realidade, o efeito é o sintoma da ausência de cidadania. 


Não é por acaso que a palavra cidadania está sendo cada vez mais falada e praticada na sociedade brasileira. Uma boa onda democrática que vem rolando mundo afora chegou ao Brasil há algum tempo e tem nos ajudado a descobrir como dar conta do que acontece na vida pública.

Cidadania é a consciência de direitos democráticos, é a prática de quem está ajudando a construir os valores e as práticas democráticas. No Brasil, cidadania é fundamentalmente a luta contra a exclusão social, contra a miséria, e mobilização concreta pela mudança do cotidiano e das estruturas que beneficiam uns e ignoram milhões de outros. E querer mudar a realidade a partir da ação com os outros, da elaboração de propostas, da crítica, da solidariedade e da indignação com o que ocorre entre nós.

Um cidadão não pode dormir com um sol deste: milhares de crianças trabalhando em condições de escravidão, trabalhadores sobrevivendo com suas famílias num quadro de miséria e de fome, a exploração da mulher, a descriminação do negro, uma elite rica esbanjando indiferença num mundo de festas e desperdícios escandalosos, de banqueiros metendo a mão no dinheiro do depositante, da polícia batendo em preto e pobre.

A fome é a realidade, o efeito e o sintoma da ausência de cidadania. O ponto de partida e de chegada das ações cidadãs. A negação radical da miséria é um postulado de mudança radical de todas as relações e processos que geram a miséria. É passar a limpo a história, a sociedade, o Estado e a economia. Não estamos falando de coisas abstratas, de boas intenções ou desejos humanitários de alguns.

Cidadania é, portanto, a condição da democracia. O poder democrático é aquele que tem gestão, controle, mas não tem domínio nem subordinação, não tem superioridade nem inferioridade. Uma sociedade democrática é uma relação entre cidadãos e cidadãs. É aquela que se constrói da sociedade para o Estado, de baixo para cima, que estimula e se fundamenta na autonomia, independência, diversidade de pontos de vista e sobretudo na ética - conjunto de valores ligados à defesa da vida e ao modo como as pessoas se relacionam, respeitando as diferenças, mas defendendo a igualdade de acesso aos bens coletivos.

O cidadão é o individuo que tem consciência de seus direitos e deveres e participa ativamente de todas as questões da sociedade. Um cidadão com sentido ético forte e consciência de cidadania não abre mão desse poder de participação.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Educação e redistribuição de renda diminuem desigualdades no Brasil




Por Felipe Prestes

O Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas (FGV) divulgou na semana passada que o Brasil atingiu seu menor índice de desigualdade de renda de sua história (medido de 1960 em diante). O dado pode não ser conclusivo, uma vez que a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), base para este tipo de estudo, saiu em 2009 e, para atualizar os números sobre a desigualdade, a FGV utilizou a Pesquisa Mensal de Emprego (PME) de janeiro de 2012, que tem dados apenas das seis principais metrópoles do país (São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife e Salvador). Ainda assim, ninguém nega a tendência constante nos últimos onze anos de queda da desigualdade de renda no país.

De acordo com especialistas em políticas sociais consultados pelo Sul21, a educação e a redistribuição de renda são o motor de uma queda na desigualdade de renda que começa timidamente nos anos 1990 e tem forte aceleração na década seguinte. Entretanto, todos apontam que o caminho rumo a uma sociedade mais justa ainda é muito longo.

“A desigualdade no Brasil é muito alta ainda. A boa notícia é que vem caindo por onze anos consecutivos e pode continuar caindo”, afirmou o coordenador da pesquisa Marcelo Néri, chefe do Centro de Políticas Sociais da FGV, durante entrevista coletiva em que apresentou a pesquisa, intitulada De Volta ao País do Futuro: Projeções, Crise Europeia e Nova Classe Média. Néri ressaltou que o país ainda é um dos dez mais desiguais do mundo.

O economista também destacou que o Brasil vem conseguindo aprofundar a redução das desigualdades, mesmo diante da crise mundial. Entre janeiro de 2011 e o mesmo mês em 2012, a desigualdade de renda caiu 2,1%, de acordo com as pesquisas mensais de emprego, e a pobreza caiu 8%, índices melhores que os da década passada, marcada pela redução da pobreza e da desigualdade. “Com uma crise no meio, é um dado notável”, disse.


Evolução histórica da desigualdade


A desigualdade de renda é medida na pesquisa pelo índice de GINI, que vai de zero (quando a renda de todos os domicílios de um país é a mesma) a um (quando um só detém toda a renda). No gráfico apresentado pela FGV, temos o GINI do Brasil desde 1960 (0,5367), baseado no censo daquele ano. Nos anos 1960, a desigualdade se acentua. Em 1970, o GINI do país chega 0,5828.

A desigualdade se mantém praticamente estável por vinte anos – “como o eletrocardiograma de um morto”, anota o estudo da FGV — embora siga aumentando em ritmo pequeno. Em 1979, o GINI do país é 0,5902 e em 1990 atinge a marca de 0,6091 A curva começa a mudar a partir de 1993, mas lentamente e de forma inconstante. Tanto que a FGV considera que na década de 1990 permanece uma inércia na desigualdade.

De 1993 a 1995, o GINI cai de 0,6068 para 0,5994, mas sobe de novo em 1996 e só chega a uma marca mais baixa que a de 95 em 1999 (0,5937). Entretanto, até 2001 a desigualdade aumenta novamente, chegando a 0,5957. A partir dali é que começa, de fato, uma queda vertiginosa da disparidade entre os rendimentos das famílias brasileiras. Em 2009, ano da última PNAD, o GINI já havia caído para 0,5448. Entre 2001 e 2009, a desigualdade caiu em média 1,1% por ano. Mesmo assim, o país ainda não alcançara ainda o índice de 1960, superado apenas em janeiro de 2012 e não pela PNAD, mas pela PME, índice que mostra apenas as principais metrópoles. Neste mês, de acordo com a FGV, o GINI chegou a 0,5190.

“Os primeiros anos do início do novo milênio serão conhecidos nos futuros livros de História Brasileira como de redução da desigualdade, em contraste com os motivos de ocupação de ícones de riqueza americana e europeia, como Wall Street em Nova York e City em Londres”, conclui o estudo.


Constituição de 1988 e Bolsa-Família são marcos na redistribuição de renda


Para economistas, a Constituição de 1988 é um dos marcos para a redução das desigualdades. É ela que fixa as bases para uma redistribuição de renda mais robusta por parte do Governo Federal. Redistribuição que ganha uma dimensão ainda maior com o Bolsa-Família.

Uma das mudanças instituídas pela Constituição de 88 foi a criação de benefícios de proteção social para os mais pobres, como a prestação continuada (BPC-LOAS), um auxílio de um salário mínimo para famílias que incluem um idoso ou um deficiente e possuem renda per capita inferior a ¼ de salário mínimo. Outra mudança foi a aposentadoria rural.

“O estado de bem-estar social era concentrado na classe média e superior. Já havia aposentadoria pública, mas não atingia os pobres, que trabalhavam principalmente na agricultura e no trabalho informal nas cidades. Benefício era para quem tinha emprego formal. O pobre estava excluído desta redistribuição”, explica Francisco Ferreira, economista-chefe do Grupo de Pesquisa em Desenvolvimento do Banco Mundial.

Durante os anos 1990, são testados nos níveis municipal, estadual e federal diversos benefícios para incrementar a redistribuição de renda, como o Bolsa-Escola, que unia o auxílio em dinheiro com o estímulo à permanência das crianças no colégio. O Governo Lula marca a unificação, consolidação e enorme ampliação destes benefícios com o Bolsa-Família.

Jorge Abrahão: Benefícios como Bolsa-Família e
BPC-LOAS estão entre os principais fatores para
a queda da desigualdade de renda | Foto: Elza Fiúza/ABr
“O principal motivo para a redução das desigualdades são políticas públicas de transferência de renda, principalmente o Bolsa-Família e o BPC-LOAS. Os valores dos benefícios estão sendo ampliados, bem como o número de beneficiários. E são políticas públicas focados nos pobres e nos extremamente pobres”, explica o diretor de Estudos e Políticas Sociais do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), Jorge Abrahão. “O Bolsa-Família principalmente, e o BPC-LOAS, contribuíram um bocado para a redução da desigualdade na cauda inferior”, concorda Francisco Ferreira.

Ferreira e Abrahão também destacam o crescimento econômico de 2002 para cá, que permite com que todos ganhem no país. E também o aumento constante do salário mínimo aliado ao fato de que cada vez é maior o número de pessoas com trabalho formal, portanto, recebendo com base neste índice. “Mais e mais pessoas estão ganhando salário mínimo. A renda média está subindo, mas a dos mais pobres está subindo mais. Estamos verificando no Brasil que todos estão ganhando, mas os pobres estão ganhando um pouquinho mais. Com isto, a desigualdade diminui. Isto se deve ao mercado de trabalho, que está melhorando no Brasil, formalizando mais, ampliando a renda média”, afirma Jorge Abrahão.

Acesso à educação nivela os salários

Durante a entrevista coletiva, Marcelo Néri destacou a importância da educação para a redução da desigualdade de renda, e vaticinou: “O futuro é do mais educado”. Francisco Ferreira concorda com a tese e explica que o acesso à educação é fator importante para a atual redução das disparidades salariais e que também tem a Constituição de 1988 como marco.

“A redução de desigualdade vem da redemocratização. O Brasil passa a ter novo contrato social, com o qual não é mais aceitável a falta de investimento na educação e a exclusão da base da pirâmide da redistribuição de renda. Ainda que houvesse uma retórica acerca da importância da educação na ditadura militar, não se investia tanto em educação como passou a se investir depois da redemocratização”, afirma o economista do Banco Mundial. Nesta linha, o Brasil conseguiu unir transferência de renda com o estímulo à manutenção dos filhos na escola, com programas como o Bolsa-Escola e o Bolsa-Família.

Ferreira afirma que o acesso à educação torna menor o desnível entre os salários entre os trabalhadores mais qualificados e os menos qualificados. Mesmo que os salários em geral no país estejam aumentando, o aumento da oferta de pessoas com maior qualificação diminui os salários destas pessoas em relação ao das funções que exigem menor qualificação, estas com oferta de trabalhadores cada vez menor. “Com o aumento na oferta de mão-de-obra qualificada, com base na expansão de gente com educação secundária completa e depois terciária completa, começa a cair o retorno relativo à educação superior e secundária com relação à primária. Aumentou a oferta dos trabalhadores mais qualificados e reduziu-se a oferta dos trabalhadores menos qualificados”, explica.

Álvaro Dias: Estabilidade econômica promovida pelo
Plano Real foi a causa essencial da redução de 
desigualdade | Foto: Agência Senado
Líder de oposição ressalta estabilização da moeda

Um dos mais veementes oposicionistas do Congresso, o senador Álvaro Dias (PSDB-PR) não contesta os dados do estudo. Ao contrário, ressalta que o principal fator para a queda da desigualdade seria o Plano Real, estabelecido no Governo Itamar Franco, que ficou como uma das maiores bandeiras do PSDB e do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. “Não vamos contestar os números, porque não avaliamos. Mas é possível que sejam verdadeiros, porque as mudanças ocorreram no país nestes anos. O Plano Real foi uma mudança de conceito econômico”, afirma.

Para Dias, o grande mérito do Governo Lula foi manter as conquistas do Plano Real, ao qual, ressalta, o PT se opunha anteriormente. “O mérito do Governo Lula foi manter uma proposta que combateu antes. Tentou impedir, inclusive, através de Adin (Ação Direta de Inconstitucionalidade), que nunca foi julgada pelo STF, mas que poderia desmontar o Plano Real. Quando chegou ao poder o PT mudou de posição e manteve a política econômica que herdou”, afirma.

O senador acredita que a estabilização da moeda foi a principal causa da queda na desigualdade de renda. “A estabilidade econômica se sustentando por todos estes anos foi a causa essencial da redução das desigualdades. O que reduziu realmente a pobreza no Brasil foi o Plano Real. A estabilidade econômica possibilitou isto, porque a inflação é perversa com todos mas, sobretudo, com os mais pobres”, argumenta.

De fato, a estabilidade da moeda foi ressalta por Marcelo Néri durante a coletiva. Os economistas ouvidos pelo Sul21 também concordam que o Plano Real foi importante, embora não tenha sido o principal motor, uma vez que a desigualdade começar a cair de forma mais acentuada só em 2001.

Francisco Ferreira afirma que, de fato, a inflação é mais perversa com os mais pobres como disse Dias. Conter a inflação, por si só, não causa uma redução acelerada da desigualdade de renda, mas ajuda estancar o crescimento das disparidades, porque os ricos conseguem se proteger melhor que os pobres dos preços em alta. “A inflação contribuía bastante para o crescimento da desigualdade, durante o pré-Real. Famílias mais ricas podiam se proteger melhor da inflação, porque tinham acesso a instrumentos financeiros, como contas de indexação automática e oovernight”, afirma o economista. Ele ressalta que um estudo feito nos anos 1990 pelo próprio Marcelo Néri mostrava que até o acesso a um freezer contribuía para aumentar a desigualdade, uma vez que armazenar alimentos era essencial para não perder poder de compra.

Para Jorge Abrahão a estabilização é importante, mas nem de longe o principal fator para a redução na desigualdade de renda. “O Plano Real teve um papel importante de estabilização da moeda, mas o que define este momento que estamos vivendo é a economia brasileira vivendo outro patamar, com o agronegócio poderoso, a criação de uma estrutura industrial, um setor de serviços muito grande e uma estrutura social como nunca havia tido”, afirma.

Os desafios ainda são muito grandes


Ferreira: Para seguir reduzindo a desigualdade,
Brasil precisa melhorar a qualidade da educação
Foto: Simone D. Courtie/Banco Mundial

Ninguém nega que o Brasil ainda não atingiu um nível ideal de justiça social. E pior: que não chega nem perto disto. “Podemos comemorar que a desigualdade está caindo, mas não podemos comemorar nossa desigualdade. Nós somos campeões. Estamos longe até de países da América Latina”, afirma Jorge Abrahão.

“Falta muito. Não há a menor dúvida de que temos tido um progresso enorme nos últimos dez, doze anos e que estamos no caminho certo”, afirma Francisco Ferreira. O economista do Banco Mundial diz que é difícil precisar quanto falta, mas acredita que pode ser um bom parâmetro observar o GINI dos países mais desenvolvidos, membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que inclui principalmente nações do Hemisfério Norte, além de países como Austrália e Japão. Entre os países da organização, tirando Chile e México, que possuem maior desigualdade, os maiores índices de desigualdade são de Estados Unidos e Portugal e estão na faixa entre 0,4 e 0,45. “Os demais estão daí para baixo”, afirma.

Seguindo a meta de 0,45, o Brasil precisaria ainda reduzir a desigualdade quase o dobro do que conseguiu entre 2001 e 2009. O desafio é conseguir isto. Ferreira concorda com a sentença de Néri, de que educação é fundamental. “Tem que continuar havendo muito trabalho em educação. Não só na quantidade de vagas, que já estamos expandindo, mas na qualidade. O que as pessoas aprendem nas escolas ainda é muito ruim. Quanto mais a criança pobre aprender, melhor deve ser seu salário no futuro, portanto isto vai contribuir para a redução da desigualdade, assim como a expansão da educação fez”.

Para Jorge Abrahão, educação é fundamental, mas é preciso ter uma economia forte para absorver esta oferta de trabalhadores qualificados. “Ter mais educação influencia, mas tem países que tem muita educação e a renda é muito baixa. É preciso que as estruturas de demanda funcionem, que a indústria funcione. Não podemos ter desindustrialização. É preciso que a economia funcione para incorporar estes mais educados. Estruturação de áreas com tecnologia avançada, um planejamento estratégico”, diz o diretor de Estudos e Políticas Sociais do IPEA.

O senador Álvaro Dias afirma que o Governo Lula desperdiçou oportunidades de reduzir mais a desigualdade, fazendo reformas como a tributária, e que o Governo Dilma segue na mesma toada. “Os desdobramentos do Plano Real não se esgotaram, mas estamos perdendo oportunidades. O Governo Lula não fez reformas e o Governo Dilma também está demonstrando inapetência para elas. A reforma tributária é instrumento de distribuição de renda, através dela poderíamos reduzir diferenças”, defende.

Jorge Abrahão concorda que é preciso mudanças na estrutura tributária brasileira. “Lógico (que é necessária a reforma tributária), no sentido progressivo. Quem tem mais, paga mais. Viemos de um histórico patrimonialista. No Brasil você não taxa a riqueza. O cara aqui pode ter a riqueza que quiser que paga pouco imposto”, diz.

Para Francisco Ferreira, o Brasil também poderia incrementar ainda mais a redistribuição de renda se fosse menos benevolente com os não-pobres. O economista pontua que o país deveria reduzir sua carga tributária para obter crescimentos econômicos mais expressivos. E que seria impossível reduzir os impostos e aumentar a transferência de renda sem tirar dos ricos e da classe média. “Não dá para redistribuir mais, pois o grau de generosidade do Governo com as classes média e alta é muito grande. Gastamos muito com os não-pobres. Aí entram, principalmente, as altas aposentadorias no setor público e outras benesses do governo brasileiro que não vão necessariamente para os pobres. Não dá para fazer as duas coisas, até porque a máquina estatal precisa ficar mais eficiente para crescer”, opina.


PME x PNAD

Uso de dados da Pesquisa Mensal de Emprego é visto com
reserva por pesquisadores, mas há  consenso sobre queda
de desigualdades Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr
O próprio estudo da FGV reconhece “limitações” no uso da Pesquisa Mensal de Emprego (PME), que avalia apenas metrópoles, para analisar a desigualdade de renda, em comparação com dados nacionais da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD). Mas defende que a PME reflete a realidade da igualdade de renda no país, porque “todas as grandes inflexões da distribuição de renda dos últimos 20 anos foram antecipados por ela”.

Além disto, os pesquisadores do Centro de Políticas Sociais argumentam que não se pode ficar “ilhado” à espera de uma nova PNAD, principalmente porque a última pesquisa nacional foi feita sob reflexo imediato da crise de 2008, que ocorrera apenas três meses e meio antes.

Para Jorge Abrahão, do IPEA, o uso da PME pode representar um “salto” para baixo na desigualdade, por ter dados apenas das metrópoles. “É restrito às metrópoles, você faz um salto. Representa o Brasil urbano, mas não pega nem as cidades pequenas, nem outras metrópoles. A PNAD representa o Brasil inteiro”, diz.

Francisco Ferreira concorda com a FGV que a tendência a médio prazo entre a PME e a PNAD tem sido a mesma. Entretanto, sugere que dados da PME deveriam ser comparados entre si e não com os da PNAD. Mas reforça que Marcelo Néri é um pesquisador “cuidadoso”. Nenhum dos especialistas refuta que a desigualdade pode não ter chegado a seu menor nível histórico, mas que, de fato, o rumo é este.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

CARTA ABERTA AO BRASIL






JOSÉ GENUÍNO

Eles passarão, eu passarinho.
Mário Quintana


Dizem, no Brasil, que as decisões do Supremo Tribunal Federal não se discutem, apenas são cumpridas. Devem ser assumidas, portanto, como verdades irrefutáveis. Discordo. Reservo-me o direito de discutir, aberta e democraticamente com todos os cidadãos do meu país, a sentença que me foi imposta e que serei obrigado a cumprir.

Estou indignado. Uma injustiça monumental foi cometida!


A Corte errou. A Corte foi, sobretudo, injusta. Condenou um inocente. Condenou-me sem provas. Com efeito, baseada na teoria do domínio funcional do fato, que, nessas paragens de teorias mal-digeridas, se transformou na tirania da hipótese pré-estabelecida, construiu-se uma acusação escabrosa que pôde prescindir de evidências, testemunhas e provas.
Sem provas para me condenar, basearam-se na circunstância de eu ter sido presidente do PT. Isso é o suficiente? É o suficiente para fazerem tabula rasa de todo uma vida dedicada, com grande sacrifício pessoal, à causa da democracia e a um projeto político que vem libertando o Brasil da desigualdade e da injustiça.
Pouco importa se não houve compra de votos. A tirania da hipótese pré-estabelecida se encarrega de “provar” o que não houve. Pouco importa se eu não cuidava das questões financeiras do partido. A tirania da hipótese pré-estabelecida se encarrega de afirmar o contrário. Pouco importa se, após mais de 40 anos de política, o meu patrimônio pessoal continua o de um modesto cidadão de classe média. Esta tirania afirma, contra todas as evidências, que não posso ser probo.
Nesse julgamento, transformaram ficção em realidade. Quanto maior a posição do sujeito na estrutura do poder, maior sua culpa. Se o indivíduo tinha uma posição de destaque, ele tinha de ter conhecimento do suposto crime e condições de encobrir evidências e provas. Portanto, quanto menos provas e evidências contra ele, maior é a determinação de condená-lo. Trata-se de uma brutal inversão dos valores básicos da Justiça e de uma criminalização da política.
Esse julgamento ocorre em meio a uma diuturna e sistemática campanha de ódio contra o meu partido e contra um projeto político exitoso, que incomoda setores reacionários incrustados em parcelas dos meios de comunicação, do sistema de justiça e das forças políticas que nunca aceitaram a nossa vitória. Nessas condições, como ter um julgamento justo e isento? Como esperar um julgamento sereno, no momento em que juízes são pautados por comentaristas políticos?
Além de fazer coincidir matematicamente o julgamento com as eleições.
Mas não se enganem. Na realidade, a minha condenação é a tentativa de condenar todo um partido, todo um projeto político que vem mudando, para melhor, o Brasil. Sobretudo para os que mais precisam.
Mas eles fracassarão. O julgamento da população sempre nos favorecerá, pois ela sabe reconhecer quem trabalha por seus justos interesses. Ela também sabe reconhecer a hipocrisia dos moralistas de ocasião.
Retiro-me do governo com a consciência dos inocentes. Não me envergonho de nada. Continuarei a lutar com todas as minhas forças por um Brasil melhor, mais justo e soberano, como sempre fiz.
Essa é a história dos apaixonados pelo Brasil que decidiram, em plena ditadura, fundar um partido que se propôs a mudar o país, vencendo o medo. E conseguiram. E, para desgosto de alguns, conseguirão. Sempre.
São Paulo, 10 de outubro de 2012.
José Genoino Neto